segunda-feira, 6 de setembro de 2010

cultura marajoara, uma expressão da anima mundi

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que significado um caboco filosofante poderia dar à passagem de dois pesquisadores e artistas italianos como Stefano Ricci e Claudio Franchi num lugar simbólico da amazonidade, como é o caso do São José Liberto, em Belém do Pará?

para ensaiar resposta à altura do momento que se nos oferece, comecemos por abordar a persona dos ilustres visitantes. Claudio Franchi, artista multidisciplinar, dedica-se a estudar antiguidades e história da arte para daí recuperar e conservar o patrimônio mundial na espiral evolutiva de seu desenvolvimento contínuo. Ele estabelece nova forma de conceber e fazer arte. Especialista em ouro e prata, cria técnica formal aplicada a revisitar códigos expressivos do passado com vistas à invenção duma linguagem contemporânea. Foi este famoso ourives quem fez o anel do Pescador para o Papa.

Ricci é esteta que pesquisa formas pluridiversas da natureza em diferentes espaçotempos e as traduz na profusão do mundo da cultura para a arte do desenho. Portanto, ele é poeta da imagem e investigador da linguagem da paisagem que se transforma em civilização. A conexão que ele faz entre palafitas da velha Veneza e manguezais do arquipélago do Marajó é genial. Com toques mágicos de Midas transmutando miséria em riqueza e apurado exercício geométrico, Ricci é capaz de ver e compreender num relance o que o vulgo custaria a enchergar durante uma vida inteira. Assim, ele toma da existência de um animal ameaçado de extinção ou fragmento de artefato arqueológico a matéria-prima desqualificada para fazer dela uma peça de rara beleza recuperada de um tesouro perdido.

Ricci e Franchi dentre outros caçadores de tesouros, foram atraídos pelo grande rio das amazonas e terminaram por descobrir as ruínas abandonadas da antiga arte marajoara. Face às piores notícias do desastre colonial e do abandono da cultura marajoara de mil anos eles mostram o caminho da renascença. Não sabem talvez qua há 20 anos a Constituição do estado determina levar em conta no planejamento econômico a vocação da região e o bem-estar da gente marajoara.Que há mais de setenta anos Heloisa Alberto Torres anunciou ao País inteiro, estar na ilha do Marajó o mais importante patrimônio arqueológico brasileiro do qual se fala como ruína deste 30 de novembro de 1756... Daí foram arrancados e levados várias peças e coleções para Chicago, Rio de Janeiro, Paris, Londres e outras cidades do país e exterior sem nenhuma consideração ou compensação para as desletradas populações locais. Giovanni Gallo foi até hoje o único que viu na pobreza da população a riqueza que Ricci e Franchi estão nos revelando através da arte do São José Liberto.

A passagem deles nesta Belém da Amazônia deve ser considerada no conjunto do contributo da Itália à invenção da Amazônia no seio da latinidade. Impossível falar de arquitetura em Belém do Grão Pará sem lembrar de Landi, porém mais do que se vê em forma concreta o olhar italiano na Amazônia nos ensina a ver o peso imponderável da cultura autóctone que permanecia oculta na paisagem debaixo de nossos olhos cegos de tanto ver. E, portanto, quando se olha com arte coisas mortas elas se transformam em processos vitais. Que nem Picasso com poucos traços era capaz de transformar um esqueleto de peixe deixado no prato ao fim duma refeição num debuxo de desenho.

Quero me referir, por exemplo, a um Ermano Stradelli em viagem interior pelos rios da Amazônia na busca do Homem supostamente do passado cada vez mais presente num mundo contemporâneo fadado à decadência... E, sem dúvida, ao pirandeliano jesuíta que foi inventor do primeiro ecomuseu da Amazônia - o Museu do Marajó - Giovanni Gallo. A Itália se fez presente nesta região através de Portugal desde o primeiro momento (não podemos esquecer que a história dos descobrimentos marítimos começa nas cidades-estados italianas para se estabelecer mais tarde em Sagres, antes do Descobrimento).

Isto explica talvez a razão pela qual a Alemanha tão decisiva no Novo Mundo não teve colônia diretamente, mas exerceu e exerce influência na América Latina através da Espanha, na fase colonial. A Itália chegou no Brasil através de Portugal. Uma figura fortemente portuguesa como foi o Padre Antônio Vieira, célebre Payaçu dos índios na missão na Amazônia, como Silvano Peluso ensina foi autor duma obra apaixonante chamada a "Chave dos Profetas" movido por sua utopia evangelizadora para advento do reino de Jesus Cristo consumado na terra sob o trono espiritual de Roma e material de Lisboa. A arqueologia das idéias, portanto, é o divã (para não dizer a rede, hamaca) da psicanálise da história.

se a gente compreender bem a "Viagem Filosófica" (1783-1792) logo irá saber que o sábio baiano de Coimbra foi discípulo do italiano carbonário Domenico Vandelli, naturalizado português como Domingos Vandelli. Há que considerar ainda Landi naturalista que, certamente, orientou a excursão de Alexandre Rodrigues Ferreira ao Rio Negro, pelo menos, onde o arquiteto havia estado a serviço da demarcação de limites, em Barcelos-AM.

não podemos nos esquecer que o italiano Giovanni Balby (memorizado com a rua João Balbi, em Belém) teve papel articulador na Adesão do Pará à Independência do Brasil e que o sogro do marajoara Antônio Pedro de Azevedo, lider da proclamação da dita Adesão na vila de Muaná, em 28 de maio de 1823; era o italiano Custódio Calandrini, homem de ideais republicanos com negócios na colônia francensa das Guianas. Outro italiano notável na história da revelação da Amazônia profunda foi o sociólogo Pasquale di Paolo, o primeiro a chamar atenção do público para o papel do "contágio" republicano no Pará através da Guiana francesa, que esteve na origem da revolução popular da Cabanagem (1835-1840).

estamos falando, pois, de Paraíso e Inferno na dialética mundializante entre o velho e o novo mundos... No meio disto tudo uma tênue ponte com pilar invisível no Museu do Marajó (esta enjeitada invenção local da Latinidade global). Giuseppe Garibaldi e Anita Garibaldi no extremo-sul brasileiro armando conexões da República universal: no extremo-norte o índio sutil Dalcídio Jurandir, o romancista da "Criaturada grande" (populações tradicionais amazônicas), autor de "Linha do Parque" no Rio Grande do Sul; que por acaso veio a ter na família um genro paulistano de origem italiana... Então, para encerrar o discurso neolatino acerca do São José Liberto e os italianos, toda viagem é única mas a viagem filosófica continua.

Como no rio de Heráclito, não se mergulha duas vezes no Amazonas: aqui o paraíso e o inferno são vizinhos ao limbo canônico onde as populações tradicionais vegetam esperando Godot. Dante permanece no meio do caminho da selva escura da qual, de tempo em tempo, algum novo viajante vem desvendar na paisagem invisível o tempo arqueológico sempre vivo.

Um comentário:

  1. ser chamado de marajoara e só pra quem nasce no marajó ou serve para todo paraense?

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