quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cacicados e Caciquismo

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Que nem o ínclito deputado carioca Índio da Costa nada tem a ver com os povos indígenas extintos pela "civilização" no litoral do estado do Rio de Janeiro, também não tem parentesco nenhum o malfadado caciquismo político das províncias do Brasil e a antiga instituição de liderança das primeiras sociedades complexas das Américas.

Vejo como projeção de maus costumes dos colonos sobre povos "primitivos" essa estória de chamar de cacique a reizulus e senhores de casa grande, que mandam e desmandam nas satrápias da política. A América do Sul vem de começar, depois de 200 anos de movimento independendista das antigas colônias americanas; o que se poderia chamar de a etapa final da descolonização.

Os riscos em dar com os burros n'água são consideráveis. Todavia, damos um passo adiante ou recairemos na ociosa oscilação de ciclos de ditadura e demagogia que caracteriza a história das Américas Latinas...

A Constituição de 1988, fazendo eco ao esgotamento da Guerra Fria, foi estuário de uma demanda democrática tanto tempo represada; a bem dizer desde a Abolição da escravatura (1888). O Caciquismo vem perdendo terreno face à moderna democracia representativa, mas ainda assim ele está longe de estar morto. A defenestração de Collor de Mello do Palácio do Planalto teve nos caras-pintadas nas ruas um elemento muito significativo para excitar a paixão política, porém o governo Collor caiu mais por ter cometido a arrogância de juventude ao desafiar velhos caciques, que não pintam o rosto jamais e nem deixam a segurança dos palacetes de residência.

A era Lula pode significar um hiato histórico de fraqueza dos caciques, em mal de adaptação à nova rodada global premida pela crise econômica e a mudança climática. Lula pode ser chamado de tudo, menos de analfabeto político: ele não mordeu a isca do terceiro mandato e saiu por cima. Renunciou a ser cacique para maior ódio dos caciques... Que morrem de inveja de um Cara esperto assim, que manda sem se apegar ao mando da cadeira.

Os mais espertos do "fim da História" embarcam anciosos na nau do ecocapitalismo à todo vapor. Mas, os povos e populações tradicionais pela primeira vez estão diante de uma oportunidade concreta de fazer um novo mundo possível, como reza a ladaínha do FSM. O diabo é que muitos dos "brancos-de-olhos-azuis" que empestaram o mundo de fumaça industrial querem agora, à fina força de marquetingue, cobertos de lã com pés de cabra de fora, tomar conta novamente da situação.

O que há de novo? Do impedimento do presidente da República ao rolo compressor da iniciativa popular impondo goela abaixo a lei do Ficha Limpa aconteceu algo impensável há poucos anos (eu não acreditava que a tal lei fosse colar e sei que colou por causa da internet). Caciques políticos tremem, há choro e ranger de dentes nos fundões das capitanias hereditárias... As chamadas esquerdas (noves fora velhos escaldados da "ditabranda"...)festejam antes do tempo.

Não sei não! Tomara que a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) tome pé, aprendendo, ao mais rápido possível, com os acertos e erros da União Européia. A primeira lição será talvez para decifrar o enigma do Libertador (Simon Bolivar)como proposta de um pan-americanismo crioulo que não seja mera cópia malfeita do absolutismo da velha Europa. É certo que tem o viés socialista de Abreu e Lima no bolivarismo. No Brasil não sabem quem foi o General brasileiro de Bolivar... Claro que não podemos "extirpar" de nós mesmos nosso passado ultramarino indo-europeu e africano, mas é no renascimento ameríndio que se deveria apostar mais, inclusive fazendo atenção às teses de desenvolvimento político-cultural na obra de Antonio Gramsci.

A que tipo de democracia popular as massas latino-americanas poderiam aspirar? Leonel Brizola chegou a sugerir um certo "socialismo moreno", que Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e outros poderiam teorizar... O martiniquense Frantz Fanom deixou uma excelente literatura para pensar o "socialismo moreno", ou melhor, tropical. Mas, na verdade, a Ditadura de 64 fez corte raso na intelectualidade brasileira. As contradições do momento são muito intensas e o centro econômico (EUA-UE-Japão)não dão mostras de estar à altura das mudanças inevitáveis, enquanto as economias emergentes (Brasil, China, Índia, Rússia) ainda ofuscadas pela nebulosa nacionalista, donde estão a sair, carecem de tempo para investir numa nova direção internacional. Haverá (tomara!) uma breve "idade média" no colapso da Roma norte-americana? Mas, já se sabe da queda do império e o povo norte-americano tem cacife suficiente para mudar o script. Ninguém precisa ser anti-americano: a classe capitalista já faz isso... O que falta é o povo americano abrir os olhos e fugir da alienação consumista e do chauvinismo arrasador. Precisa de maior visão de mundo e a conviver com as diferenças. Revogar o dito "índio bom é índio morto" e cuidar de salvar o que ainda lhe resta de pele-vermelha.

Bobagem! Que sabe um caboco velho como esse? Hão de dizer os sábios da modernidade do alto de seus arsenais atômicos ao largo da montanha de cadáveres de civis inocentes e jovens soldados recrutados para guerras ofensivas sem razão de ser. No entanto, um pouco de humildade poderia abrir as portas das academias ao estudo sociológico de formas de governo de populações tradicionais.

Aí, talvez, se achariam notícias sobre cacicados originais, que funcionaram como verdadeiras confederações de aldeias. Nos quais a figura do Cacique pouco diferia do atual papel honorífico da raínha da Inglaterra (reina mas não governa). Uma liderança "orgânica", socialmente construída e aceita por todos. Pelo que dizem textos antigos, Cacicados duradouros eram garantes de paz nas regiões. Ao contrário de "caciques" modernos movidos a golpes baixos e preocupados com vinganças e retaliações de inimigos. Contudo, é certo que os verdadeiros caciques -- excepcionalmente --, em caso de perigo, exerciam função militar na guerra defensiva. Nada estranho aos gregos antigos, ao que parece.

Afinal de contas, o que é a lei da Ficha Limpa além do arcaico estatuto heleno do ostracismo? Nas exaustivas sessões do STF, podendo ser assistidas pela TV Justiça, viu-se como a renascença da Ágora ateniense, para banir "caciques" da política tupiniquim: não faltaram citações sibilinas atribuidas a Sócrates (o da cicuta) e Platão (modelo perfeito do governo das elites). Por pouco deixaram de evocar Aristóteles e justificar o jugo, natural, de senhores sobre escravos como "cláusula pétrea" (eterna) de direito constitucional. Fora do augusto palácio, porém, o espírito de Robespierre misturava-se à multidão de televidentes.