domingo, 14 de novembro de 2010

A MÃE DE JURUPARI E A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA

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a primeira notícia que os civilizados tiveram sobre Jurupari saiu da França Equinocial (1612-1615) [cf. Abbeville, Claude d´- "História da missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas: em que se trata das singularidades admiráveis e dos costumes estranhos dos índios habitantes do país", São Paulo : Livraria Martins, 1945.].

em tão pouco tempo, não seria possível aos padres captar e entender a complexidade do pensamento tupinambá. Muito do preconceito católico que recaiu sobre o espírito tutelar dos pajés do Maranhão os padres já encontraram de parte dos aventureiros protestantes da colônia de La Ravardière. Muito notadamente, o piloto e intérprete Charles des Vaux, braço direito de Daniel de la Touche, entendido na língua e costumes dos Tupinambás. Daí que para o Jurupari dos índios virar Diabo dos cristão não demorou nada.

a França estava em guerra com a Espanha e Portugal por causa do célebre "testamento de Adão" (tratado de Tordesilhas de 1494) e Portugal subjugado pelos Reis Católicos, desde 1580 até 1646, durante a União Ibérica. O Diabo fora o grande álibi dos católicos na matança dos protestantes franceses na fatídica Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1570)... A guerra religiosa francesa, portanto, vazou ao Maranhão e contagiou toda Amazônia desde o berço.

tomado o Maranhão aos coloniais protestantes de La Ravardière pelos portugueses de Jerônimo de Albuquerque; e expulsos do Grão-Pará holandeses e britânicos (1623-1647) o Diabo cristão em figura de Jurupari continuou fazendo das suas, segundo o juízo de Claude d'Abbeville. Tanto que as ilhas Jurupari, como monumento natural na foz do rio Amazonas, conserva na memória dos cabocos ribeirinhos a herança dos índios antepassados e o folclore da ilha do Marajó ainda guarda o dia do Berto (24 de agosto) como lembrança remota da trágica Noite de São Bartolomeu em Paris.

o curioso da inventiva dos tapuios (índios catequizados), deixada aos descendentes marajoaras através do folclore, é que esse Berto (representação do Diabo) capaz de causar acidentes e danos a que ousar trabalhar nesse dia; também é capaz de prestar serviço à comunidade: pois, vagando pela várzea o Capeta vai urinando nas touças de açaizeiro com que o fruto "preteja" (amadurece) de vez.

todavia, precisou três séculos desde a maldição de Jurupari na França Equinocial para o alemão naturalizado brasileiro Curt Nimuendaju decifrar o enígma das migrações dos Tupinambás e chave da religião dos pajés-açus ou caraíbas. Hoje, se a filosofia amazônica fizer cruzamento da História, com a Antropologia e a Psicologia logo se há de perceber que, movidos pelo espírito tutelar em busca da mítica Terra sem mal (Yby Marãey) foram os Tupinambás os verdadeiros conquistadores da terra dos Tapuias (Tapuya tetama), Grão-Pará, Amazônia.

a "linha" do tratado de Tordesilhas, entretanto, pelo meridiano de 370 léguas a oeste de Cabo Verde tangenciava, no terreno, a "Costa-Fronteira do Pará": litoral meridional da ilha do Marajó limitada da Terra-Firme (continente) pela baía de mesmo nome. Na realidade, a fronteira tordesilhana na Amazônia - de direito e de fato - teve na brava resistência marajoara seu maior baluarte.

tal resistência cedeu passagem pela primeira vez em 1538, por suposto, frente à poderosa migração de 14 mil tupinambás chegados até o Alto Amazonas (cf. relato de Diogo Nunes, em "O Novo Éden", de Nelson Papavero et al.). Antes do "descobrimento" de Francisco de Orellana e Gaspar de Carvajal (1542). A segunda vez, frente à entrada de Pedro Teixeira de Belém (Pará) a Quito (Equador), 1637/39), levado por 1200 arcos e remos tupinambás. Enfim, a pacificação das ilhas do Marajó pelos jesuítas sob a missão do payaçu Antônio Vieira, com o desdenhado encontro do rio Mapuá [Breves], de 20-27 de agosto de 1659.

não há dúvida de que os poucos portugueses no Maranhão Grão-Pará, sob contínua desconfiança e má-vontade dos castelhanos na União Ibérica, apesar de valentes não poderiam sozinhos conquistar a praça de São Luís do Maranhão nem se estabelecer no Pará, muito menos romper a "linha" de Tordesilhas para atravessar o muito povoado arquipélago do Marajó rio Amazonas acima expulsando dali concorrentes holandeses, ingleses, irlandeses e escosseses, desde 1599, com feitorias de escambo de miçangas (facas, machados, contas de vidro) a troco de gados do rio (peixe-boi, tartarugas e pirarucu) e drogas do sertão (paus de tinta, urucu, cacau, quinina, etc.) com índios "nheengaíbas" (aruaques) inimigos hereditários dos tupinambás.

o que, de fato, aconteceu que a historiografia colonial não entendeu ou se entendeu omitiu? Primeiro, que a antropologia americana estava por fazer até inícios do século XX: o índio não tinha história senão como coajuvante do branco colonizador... Quando aparecia nos relatos de missionários, sertanistas e viajantes era com antipatia e preconceito. Só agora a partir do movimento dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente os povos e populações tradicionais viraram gente propriamente dita.

mas, que diabo afinal é Jurupari e como ele veio ao mundo amazônico? Se no Maranhão Jurupari era, como frei Abbeville escreveu, o Diabo que veio da Europa arruinar a obra de Cristo no Novo Mundo; depois de diabolizado pelos padres e levado rio acima no ventre da língua geral amazônica, o Nheengatu; Jurupari chegou aos últimos recantos e foi diversamente reinventado pela massagada catecúmena de tapuios (índios mansos).

a lenda do Jurupari, contudo, entabula uma dialética regional e está no cerne da amazônidade. Aqui a patuléia faz a sua síntese civilizacional que Freud explica: o nascimento do espírito a partir da complexidade da matéria orgânica. Da animalidade à humanidade, a cultura desponta como modo de existência. Anda mais elementar, o mundo vegetal sendo "mãe" de bichos e gentes: uns e outros parentes entre sim...

um belo dia a índia virgem Ceucy distraiu-se na floresta a comer cucura-do-mato (fruta de embaúba, muito estimada pelos índios, que os missionários compararam à uva para fabricar o vinho). O doce sumu da fruta selvagem desceu dos lábios da jovem índia escorrendo pelos seios e, por acaso, penetrou à vagina. Deu-se um encanto e Ceucy engravidou misteiosamente. Na aldeia ninguém acreditou naquela surrealista estória, sem explicar o verdadeiro pai da criança a nascer ela foi renegada pelos seus e saiu a vagar pelo mundo.

ao cair do sol no horizonte Ceucy adormeceu e nesse estado pariu a Jurupari. Ele já nasceu adulto, era filho do Sol mas havia figura sombria: vinha para corrigir o mundo e libertar os homens escravizados pelas mulheres... Há quem veja no mito vestígio do pensamento arcaico de um tempo de matriarcado pré-amazônico. Traços cristãos estão presentes na imensa fabulação onde se confundem mitos indo-europeus e indígenas de diversas extrações da babel linguística sufocada pela hegemonia do Nheengatu.

as célebres amazonas da Capadócia se misturam às Virgens do Sol dos íncas e icamiabas (mulheres sem marido) dos tapuios da floresta amazônica. Há um lendamento geral sobre o Jurupari tupi levado ao coração da Amazônia pela língua-geral. Aí talvez o óbvio "matriarcado" do nomadismo paleolítico com as mulheres e suas crias esfomeadas demanando cada vez mais caça, peixes e frutos conforme aumentava a prole; gerava tensão entre homens e mulheres, a "guerra dos sexos"... A disputa por territórios de caça e coleta aumentava o risco de confrontos mortais com grupos vizinhos.

nesse cenário Jurupari veio ao mundo para renovar o mundo pelo poder dos homens. Desde então houve a instituição da "casa dos homens" sob rigoroso segredo e interdição às mulheres. A primeira transgreção da lei de Jurupari foi cometida por sua própria mãe, Ceucy ["mãe das lágrimas"]. Curiosa do que se passava na Casa dos Homens ela aliciu um velho pajé que lhe revelou o segredo daquela revolução selvagem. Então, Jurupari a transformou na constelação das Plêiades exilando-a para sempre da terra dos homens e o velho pagou a sua falta transformado em Tamanduá, bicho que mata seus inimigos cravando-lhes poderosas unhas, como punhais, pelas costas. Que faria a Psicanálise nesta cultura ancestral?

os frades do Maranhão ficavam espantados com as premonições dos pajés vindo lhes dizer que em tantas luas havia de chegar tantas naus com esta ou aquela novidade da Europa. A teoria do Inconsciente ainda estava longe de aparecer. Pobre padres assombrados pelo Demônio, que mais podiam pensar? Jurupari quando aparece vem com o cair da noite, vestido de pesadelo, desce como uma cobra pelo punho da rede do sonhador: põe a mão pesada sobre a boca do vivente lhe impondo silêncio ainda que queira gritar. O rosto do fantasma é sombra. Então, ele fala ao ouvido do mortal revelando o futuro e dizendo o que tem quer ser feito para atalhar o mal e produzir o bem para a gente do lugar.