sábado, 8 de maio de 2010

SAUDADES DA TERRA: conflito, colonialismo e devastação na Amazônia [2]

A primitiva saudade

A primeira de nossas saudades é o demônio da consciência, filha do Inconsciente (este mundo sem fundo). Sentimento do vasto mundo sem solução do poeta Carlos Drummond de Andrade. Melancólica lembrança das muitas infâncias perdidas da Humanidade. Pressentimento de perdição do planeta, para sempre... Despertar do indivíduo que se torna consciente de ser singular e coletivo ao mesmo tempo.
Esse angustiado mensageiro de “deuses” ou profeta do caos, poeta revolucionário, pensador iluminado ou louco se tornará estranho e odiado na própria terra. Nós nunca saberemos, exatamente, como foi a vida no berço da humanidade tal como ela foi de verdade. Só a poderosa imaginação criadora pintará um pálido cenário, que se perde entre brumas, para evocar os começos do mundo, quando estrelas, plantas, homens e animais pertenceram a uma única família.
O fundo mágico e terceira margem do rio onde o bicho-homem veio à tona antes que ele tivesse fala para se comunicar com os outros e se converter pelo verbo em verdadeiro humano. O primitivo “deus criança” sentia ânsia criadora como o homem moderno inseparável de sua própria sombra. O que levou os primeiros coletores e caçadores errantes a gerar rudimentos do espírito rabiscando sua sagrada passagem na pedra virgem de cavernas com pinturas rupestres retratando natureza virgem e visões de outros mundos.

Saudade: o parto da palavra tinha que ser em Portugal

Nenhum povo teve mais consideração pelo sentimento de saudade como o português. E tanto fez por merecer que, na virada do século XX, o Saudosismo veio à luz como um movimento seminal... “A saudade na cultura portuguesa é patrimônio universal inigualável, cuja linguagem musical é o Fado: uma catedral virtual revestida de saudade cósmica que dá alma à natureza. Saudade é– materialização do espírito. Ou espiritualização da matéria, com o poeta Fernando Pessoa a exaltar o sebastianismo. A obra antropoética de Pessoa faz da verdade uma máscara brilhante que oculta uma metáfora e cada máscara que ele faz é um jogo onde a verdade se oculta. O poeta é um fingidor que leva a saudade a extremos mágicos para declarar que os saudosistas são arquitetos de civilização futura, que o cristianismo libertado de seus fantasmas corre livre com o menino deus, que há em cada homem, para ir além da fronteira do panteísmo em busca de um sentido original à vida resgatada do absurdo.
Dessa saudade congênita dos nautas lusíadas, o poeta propõe uma odisseia existencial em busca de uma Índia nova– que não existe em terras e mares descobertos: nisto, sem Pessoa desconfiar um til, sua lírica honra a desconhecida demanda do Bom Selvagem na saga mítica da “Terra sem mal”. As naus da frota poética são construídas da mesma matéria com que os sonhos são feitos. Maravilha e paradoxo! Por necessidade e acaso, naves lusas vindas do mar Oceano transportaram (em contrabando invisível a olhos catequistas) o mito selvagem rio acima... A língua de Camões, imperadora no “rio Babel”, leva no retorno da terra dos tapuias as esperanças de Portugal e mais povos de todas diásporas para além mar.
bravos não fogem nem buscam a Morte, mas amam a vida sobretudo.

Apesar da carreira que levamos e tão longe que se possa ir, sempre voltamos ao ponto de partida transformados em heróis: cada um a seu modo, secretamente, possui uma Ítaca onde Penélope espera pelo formidável Ulisses que imaginamos ser, prontos a refazer a lenda e revitalizar a antiga metáfora. Na pressa moderna, nós não nos damos conta do enormíssimo genocídio que praticamos em guerra permanente contra “inimigos” fatais, em meio à multidão de deuses mortos e heróis em decomposição...
A vida passa em ondas na esteira dos cometas de volta ao pó das origens: todavia, tudo que foi um dia será outra coisa na eterna maré até se extinguir a grande combustão cósmica para dar lugar ao obscuro caos que regenera a dor de tantos nascimentos, sofrimentos, gozos e sucessivas mortes. Talvez, sem nenhum proposito como a vaidade humana gostaria que fosse a fim de compensar sua insuportável pequenez.
O radioso e maravilhoso Sol – velho deus ou deusa criadora dos viventes, Guaracy dos povos tupis – que iluminou o grande palco da comédia humana implodirá para virar um corpo opaco num novo céu escuro, frio e indiferente a esta e outras histórias ribeirinhas. Não importa a hora nem a forma que terá o fim do mundo no contínuo vir a ser das coisas. O que importa é saber viver e prolongar a vida enquanto há tempo... Tudo está atado a tudo. A abelha coleta néctar da florada guiada por raios infra-vermelhos e faz mel na colmeia, milhões de células renováveis no organismo complexo da vaca preparam leite que será queijo na mesa do rico pelas mãos calejadas do ordenhador e do artesão; o rio soturno traz cardumes à rede de pescador que dá de comer ao pobre...
Só este periclitante “eu”, como uma taquara pensante no meio da floresta agreste, é capaz de observar e compreender os outros. Achar conexões entre si mesmo e os mais. Descobrir diversas passagens entre mundos diferentes e distinguir a realidade do sonho. Um ser singular, dotado de razão e consciência, que, timidamente, assinala sua efêmera existência como um breve sopro do infinito movimento de energia da matéria eterna. O ser criado para passar e perecer na evolução das espécies em contínua adaptação a tudo e a todos, sempre em risco de extinção...
Mas na marcha para o inevitável, enquanto pode, o mortal canta e urde sua semente desafiando a morte como o guerreiro antropófago luta com o inimigo certo de que um dos dois há de conservar a chama viva e honrar as armas e o nome do herói morto em combate. Claro, a vida é luta renhida, viver é lutar... O terreiro e a comunidade por testemunha do sangue e da carne da vítima sagrada compartilhados no rito da eucaristia bárbara. Mais tarde, a evolução social simbolizada na missa dos cabocos em demanda não mais da mítica “Terra sem mal” buscada por seus ancestrais, mas sim da santa madre civilização. Um rito de passagem para outras renascenças e ressurreições ao longo de histórias futuras...
O velho drama de Sísifo escravo do mito acorrentado ao rito do Progresso: a arte imita a vida e a vida imita a arte... Toda aventura, por ridícula que pareça, como ir e vir da feira com mãos abanando, é uma odisseia no seio da cósmica Odisseia. Voltamos, de qualquer maneira, a velha casa da infância onde ensaiamos os primeiros passos. Ao retornar já não somos os mesmos exilados de outrora nem a casa será a mesma: e, no entanto, algo permanece.
Uma vez quando jovem, num sonho, me vi regressando a uma terra distante cercada de florestas. Havia no lugar um sítio com larga maloca silenciosa, de aspecto antigo, senti com se ali algum dia tivesse sido meu lar. Ficava numa ilha grande à beira de um rio tranquilo, por onde índios subiam o curso vagaroso em canoas a remo. Tão nítida imagem que eu podia ver gotejar a água da pá do remo do nativo mais próximo, este não se admirava de minha presença ali como se talvez eu fosse um deles. Havia paz na paisagem onírica. Eu nunca experimentei felicidade igual na vida real. Pena que despertei e não mergulhei de vez naquele eterno rio... Muito depois li depoimento de um índio processado pelo Santo Ofício (cf. Ronaldo Vainfas, “A heresia dos índios”) pelo crime de imitar Jesus Cristo para fundar igreja dissidente da santa Religião. Dizia o herege ao inquisidor: “Deus criou o homem para dormir e sonhar”. O sonho pois é a meta superior da vida dos viventes, terra de igualdade sem limites.

Não me espanta agora o fato de tantos pobres de espírito e deserdados de sonhos do paraíso selvagem buscar na alucinação das drogas a imaginação prazerosa que falta no mundo da realidade.
Freud explica? Talvez sim. Mas eu acho que será isto talvez a “saudade” do paraíso perdido em diversas diásporas: da Origem à evolução das espécies. Afinal, acredito, a Natureza sonha! É da sua natureza sonhar que é Deus e Homem ao mesmo tempo.

Às favas a “imparcial” razão! Quando se trata de coletiva e solidariamente buscar a justa felicidade de todos e de cada um (isto não exclui a boa governança natural na qual, na medida do razoável, humanos comem carne de vaca e vermes comem gente). Por isto a humanidade, filha da animalidade, inventa utopias. Que são como caminhos para realizar sonhos compartilhados. Todavia, é o indivíduo naturalizado e socializado nos lugares concretos do mundo real que dá razão aos sonhos mais felizes que muitos guardamos no coração desde a infância. Concordo com Agostinho da Silva, filósofo sebastiano sobre ser a criança imperador da utopia do “quinto império”. Este reino messiânico esperado na terra há de vir ao dia em que os adultos nunca matarem a criança que eles foram uma vez... E se a felicidade é o reino da infância, não faz sentido gastar tempo e padecer para transformar meninas e meninos alegres e felizes em gente grande idiota e infeliz. Não deveríamos reclamar por estar sempre a ir e voltar do fim aos começos do mundo: cada viagem nunca é igual a outra (a cabo da História, Vico e Marx ficariam em margens opostas? Acho que não, tudo se confunde na terceira margem do rio das amazonas).

"Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu rochedo é sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos.

No universo subitamente restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da terra. Apelos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória.

Não existe sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo menos, só existe uma, que ele julga fatal e desprezível.

No mais, ele se tem como senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa seqüência de atos sem nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte.

Assim, convencido da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo continua a rolar."
(de O Mito de Sísifo - Albert Camus)

quinta-feira, 6 de maio de 2010

SAUDADES DA TERRA: conflito, colonialismo e devastação na Amazônia [1]

As saudades que aqui se tratam e que às vezes se curam.

Eu pergunto a mim mesmo, cá na beira da história, mergulhado em recordações minhas e dos outros como um índio arrancado do mato para as incertezas e perigos do mundo civilizado. O que dizer quando tudo já foi dito diversas vezes? Que fazer quando parece que tudo já foi feito? Qual caminho tomar quando a estrada acaba num abismo? Que fazer quando o mundo deu muitas voltas e tudo para nada? Que estória inventar depois que o espetacular “fim da História” não tem mais enredo?
Aqui no fim do mundo a gente diz que manda quem pode e obedece quem tem juízo. Como toda regra tem exceção, de vez enquanto aparece um desajuizado disposto a desafiar os mandões de plantão prepostos de senhores superiores e mudar a desordem das coisas. Em geral a historia se repete e termina mal a falseta para os malucos, entretanto alguma coisinha vai mudando aos poucos. Prova de que, quando há coração valente, vale a pena pagar para ver no que vai dar. Também dizemos nós que quem pensa não faz filho... Um saber popular sensato. Pois, como são numerosos filhos de mães solteiras e considerável o caso de paternidade atribuída ao boto sedutor de cabocas ingênuas, conclui-se por aí que a maioria de tais nascimentos é, deverás, mal pensada... Advirta-se entretanto que o axioma do fim do mundo está longe de desanimar a multiplicação da espécie nas baixas latitudes da Terra: na verdade, é um estímulo como eco longínquo do mandamento do velho Jeová às tribos do deserto, “crescei e multiplicai-vos”... Metam a cara e não temam pelo dia de amanhã, esta gente! Tem lógica no “espaço vazio” onde epidemias, fadigas de viagens descomunais, escravaria, guerras e genocídios devastaram rarefeitas populações ao longo de três séculos.
De fato, com a triste história dos lesados da terra que temos (noves fora uma rica camadinha de donos de podres poderes, porém pobres de espírito e imaginação criadora) faz pena chamar à vida ribeirinha mais meninos e meninas para os fazer passar mal e apanhar da sorte que nem animal de carga. Contudo a gente luta para fazer deste um mundo melhor. Não é verdade que terminou a obra humana dos descobrimentos (toda viagem, filosófica ou não, é um discurso antropoético e uma aventura da linguagem contra o projeto e construção da torre de Babel): a grande ópera da arca de Noé está sempre para começar, feita e refeita de diversas formas... Não existe caminho único e reto nesta vida nossa aparecida do espaço curvo, mas vários e tortuosos caminhos à deriva. Complexidade é o nome deste nosso mundo sem fundo que (na verdade) não é nosso nem de ninguém, mundo desintegrado (ainda assim em conexões inesperadas) de caminhos terrestres, marítimos, aéreos, virtuais...: uns levam ao jardim do éden reconquistado do Mito dos mitos (o “coração” do homem: fundo do mar-oceano encantado ou caixa preta de Pandora) e outros aos quintos dos infernos extraídos do paraíso perdido.

Estamos ansiosos demais a querer crescer mais e mais para os céus até nos esborrachar ao chão no primeiro tremor de terra... Avançar sempre mais sem nos dar conta de quem, na verdade, somos e aonde chegamos ou donde viemos como navegantes sonâmbulos. No caso destas saudades nossas e de outros, o famigerado rio das “amazonas”... Magna Grécia transplantada ao neotrópico pelos turcos encantados. Assim, na “última fronteira da Terra”, “pulmão do planeta” e outras lendas modernas abreviamos o estado criativo do Homem para apressar a inexorável marcha da morte: as horas ferem os viventes e a derradeira delas todas mata sem dó... Porque nos apegamos tanto a vida, esta termina por se assemelhar a morte: talvez, se nós respeitássemos e venerássemos mais os mortos da nossa felicidade ou infelicidade nossa vida, no campo ou na cidade, valesse mais a pena.
Pelo menos, neste ponto, os “índios” do Xingu praticantes do rito do Kuarup ainda têm algo a ensinar a seus catequistas afincados tenazmente a lhes inculcar a ideia da morte ritual de Cristo; quando os “selvagens” se esmeram em exaltar o mito da ressurreição. Nós que ainda não conseguimos compreender todo horror da guerra mundial na triste memória da hecatombe nuclear de Nagazaki e Hiroxima, nem toda extensão do Holocausto; fechamos os olhos do espírito ao ovo da serpente posto no nicho seminal da guerra metafísica de todas ortodoxias religiosas, mãe de todas as guerras frias ou tórridas como chuva de fósforo, da simples querela entre pajés até as mais altas assombrações imperiais urdidas às caladas da grande noite em laboratórios secretos pela loucura de serviços ditos de “inteligência'... Instrumentações malévolas de transtornos mentais coletivos, um pouco por toda parte da mesma casa, digo da Terra.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Pessoa ressoa pelo ar de espanto da canoa

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo.
Fernando Pessoa

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Criaturada do “índio sutil” faz artes

Influência das populações tradicionais amazônidas na cultura do Pará: uma dialética regional-universal em movimento.

“Laçar é arte que a gente morre nunca sabendo.” (filosofia de vaqueiro: Soure, Marajó; apud Dalcídio Jurandir em entrevista com Augusto Morbach, “Folha do Norte”, 1960).

No aprendizado contínuo da diversidade do arquipélago cultural ícones “regionais” abrem o universo Brasil ao mundo externo ao mesmo tempo que mostram o povo diante de um espelho. O mundo gaúcho, por exemplo, com Érico Veríssimo, a Bahia com Jorge Amado; falou-se em Mario de Andrade logo se pensa na Paulicéia desvairada... Assim por diante. No Pará, ao falar de literatura o nome de Dalcídio Jurandir salta à frente: mas nem Veríssimo é tudo no Rio Grande do Sul, nem tudo da Bahia é Amado; tampouco Mário ou Oswald de Andrade na “Semana de Arte Moderna” esgotam a rica diversidade e criaturada de São Paulo do café, que Portinari pintou. O Pará velho de guerra tem muito mais que Dalcídio, nosso “índio sutil” na inspirada saudação de Jorge Amado, na Academia Brasileira de Letras, na sessão de entrega do “Machado de Assis” de 1972. Intelectuais de grande qualidade e fidelidade amazônida, como Márcio de Sousa e Milton Hatoum adotam Dalcídio Jurandir como mestre.

O que se quer frisar não é o “maior” nem “melhor” representante de cada região. Mas a principal referência do mapa artístico e cultural. Por exemplo, acho que é consensual nos respectivos países que os poetas da Negritude, Aimé Cesaire na Martinica e Léon Damas na Guiana francesa são os principais ícones, pelo fato deles – sínteses intelectuais – interpretarem mais perto os sentimentos e esperanças (para não dizer utopia) de seus próprios povos. Como tantos outros, em diversas regiões da Terra, Cesaire e Damas tornaram-se país da negritude e guardas do “fogo sagrado” da criatividade por um complicado processo social, no qual o indivíduo (cria da sociedade) se faz criador cultural e símbolo vivo da coletividade.

'Mutatis mutantis' a sociedade humana imita abelhas e formigas que “elegem” dentre operárias uma destas últimas do reino para ser rainha da colmeia ou formigueiro. Entre a extrema simplicidade da vida dos insetos e a fantástica organização bizantina dos seres celestiais na alta imaginação das estrelas, subsiste a dura realidade e complexidade dos seres humanos na terra. Entretanto, a gente faz artes e ofícios intercomunicantes da cultura criando céus e infernos, inclusive. A fim de testemunhar a tragicomédia da vida, forjam-se intelectuais orgânicos como diria Gramsi: no caso da Criaturada grande, intelectuais orgânicos são herdeiros de pajés e país ou mães de santo... Que nem, na vida selvagem, grupos de animais de diferentes espécies tem lá seus guias e principais.

É antes a sensibilidade neurocerebral de certos indivíduos em simbiose com a coletividade de seu tempo e lugar (que a psicologia e a neurociência talvez possam explicar, ainda que palidamente) dotados da “ânsia” de viver e encontrar saída ao risco de vida, ao sofrimento e a fugir do eterno dilema da existência em curso para a morte. Aquilo tudo que se transforma em ser social e cria espírito de comunidade. Claro, homem nenhum é uma ilha e sozinho ninguém se salva nem vai para o inferno! Nem mesmo no mundo da animalidade, mãe da humanidade; não subsiste indivíduo sem espécie.

Isto posto, vejamos a passagem original da natureza à cultura. Na Amazônia, 11 mil anos desafiam nossa vã filosofia: a cabo de cinco mil anos de nomadismo pelo seio da planície a várzea pariu a civilização neotropical: pra não dizer que foi o rio ou a Cobragrande mãe dos humanos. Sendo a ilha do Marajó espaço natal da primeira cultura complexa, cacicados; da Amazônia. A arqueologia dá várias pistas tateando no escuro labirinto do mito da primeira noite do mundo... Mas, se não fosse a imaginação dos pajés, mais a utopia da Terra sem mal do bom selvagem tupinambá e a loucura sebastiana evangelizadora; a gente ainda estaria (para o bem e o mal) no mato sem cachorro.

É da revelação deste mundo sem fundo que trata o romanceiro do “índio sutil', aliás crioulo filho de branco e de negra. Dalcídio Jurandir, homem-síntese da amazonidade profunda e que queria ser tratado apenas como um romancista marajoara... Astúcia de caboco para ganhar o mundo, certamente para ser mais universal ainda. Vicente Salles informa que o escritor marajoara “não extrai desse universo qualquer imagem idealizada. As experiências foram vividas e, por isso, permitiram-lhe fazer com autenticidade a literatura do cotidiano, nos campos de Marajó, como nos bairros pobres de Belém.”... Diz o crítico com autoridade que tem na matéria, “não é possível escrever a história social paraense sem o conhecimento da obra de Dalcídio Jurandir”.

Em “Chão de Dalcídio” (revista Asas da Palavra, nº 4, Belém: UNAMA, 1996) Vicente Salles esclarece que no romance dalcidiano é marcante a presença de negros e mulatos. No entanto, a este mulato a intuição de Jorge Amado colou o apelido perfeito de “índio sutil”... O próprio Dalcídio preveniu que em “Chove nos campos de Cachoeira”, escrita na vila de pescadores de Salvaterra em 1939, depois de vagar pelas ilhas com um calhamaço de rascunho do romance; se encontra a obra toda em manifesto. No mesmo ano e lugar ele escreveu também “Marajó” (único da série em que Alfredo não aparece, para depois por astúcia do autor o alter-ego puxar o segundo romance para dentro da jornada do ginasiano de “Primeira Manhã”. Um choque frontal entre os anseios do menino ribeirinho e a educação oficial da cidade grande. O crítico vislumbra em “Marajó” um rebento amazônico tardio do “velho romance “Dona Silvana”, chegado até nós de fontes ibéricas, modificou-se certamente neste contexto em que se agitam pretos e mulatos, caboclos e brancaranas em geral.”

Aí estão nas letras brasileiras uma Amazônia ribeirinha, onde o rio e o mar pelejam sem parar na dialética da maré (fluxo e refluxo). E, sem contradição, diversas vezes como no rio de Heráclito, se harmonizam as opostas correntes na singela paz da tipacoema e grandeza cósmica da preamar. A um mísero passo, tão só, da conquista do paraíso na Terra... Quem não crê não vê o porto do Sol, o Araquiçaua. Onde deuses e humanos serão iguais no fim da história, segundo a promessa dos caraíbas!

Claro está que Dalcídio coletou as suas chuvas como a ilha bebeu na fonte das nuvens para fazer o milagre dos peixes, atrair homens gapuiadores e inventar a Cultura Marajoara há 1500 anos. Todavia, o romancista foi poeta e como tal teve um mestre, este também à semelhança do africano Senghor, do antilhano Cesaire e do guianense Damas um bardo da Negritude. Mas, a sutil diferença da negritude amazônida de Bruno e Dalcídio é que aqui o índio (como no Caribe) foi o primeiro escravo do branco, nosso “negro da Terra” cativo na Casa das Canoas. Celeiro da revolta da Cabanagem com os ventos que sopraram do Haiti (1804) – primeira república latino-americana – através de tropas paraenses mestiças da ocupação de Caiena (1809-1817) de regresso ao Pará.

Em suma, não dá para falar de Dalcídio sem seu mestre Bruno e de ambos sem a “Criaturada grande do Marajó, Ilhas e Baixo Amazonas”. A negritude poética de Bruno conflui com o romanceiro do “índio sutil”. Ambos autodidatas, o mestre do bairro do Jurunas (Belém) é 16 anos mais velho que seu aprendiz de Cachoeira do Arari e não se conheceram, provavelmente, antes de 1922 ou 1923, quando Bruno fundou a revista modernista “Belém Nova”, enquanto diretor do departamento de Cooperativismo, da secretaria estadual de Agricultura.

Bruno de Menezes foi propagador do surrealismo e este é mais um contado da negritude paraense com as Antilhas de Cesaire, onde André Breton andou bebendo inspiração. O catolicismo popular povoado de encantaria, orixás e vóduns pelo sincretismo faz ponte entre o altar da igreja e o terreiro. Deuses e santos se disfarçam na face oculta da feira do Ver O Peso atrás de tabuleiros e bancas de ervas, mandingas e frutas exóticas, aí o poeta de “São Benedito da Praia” foi grãomestre.
O discípulo escrevia: “Bruno de Menezes: Meu babalaô – como vão os orixás, meu velho? Me lembro ainda da bênção da Mãe de Santo naquela tarde sagrada. Venho vindo do mar. Meu corpo de encantou num filho de Iemanjá! É preciso que os oguns rezem, que a mãe de santo evoque o pai dos orixás para o filho de santo se desatuar e volte ao terreiro... Como vamos de “Não posso me Amofiná”? [bloco de carnaval]. Pai João está alegre porque o seu babalaô faz falação no jornal. Notável. Análise aguda. Abençoou, babalaô? Dalcídio.”

Com a morte do amigo Bruno de Menezes, em Manaus, 1963, a correspondência Rio-Belém não se interrompeu senão com a morte de Dalcídio Jurandir (Rio de Janeiro, 1979): Maria de Belém Menezes, filha do poeta, abasteceu o romancista marajoara com notícias e coisas do Pará. Com que a criatura grande foi exilada com seu fiel intérprete numa modesta morada carioca em Laranjeiras.