segunda-feira, 3 de maio de 2010

Criaturada do “índio sutil” faz artes

Influência das populações tradicionais amazônidas na cultura do Pará: uma dialética regional-universal em movimento.

“Laçar é arte que a gente morre nunca sabendo.” (filosofia de vaqueiro: Soure, Marajó; apud Dalcídio Jurandir em entrevista com Augusto Morbach, “Folha do Norte”, 1960).

No aprendizado contínuo da diversidade do arquipélago cultural ícones “regionais” abrem o universo Brasil ao mundo externo ao mesmo tempo que mostram o povo diante de um espelho. O mundo gaúcho, por exemplo, com Érico Veríssimo, a Bahia com Jorge Amado; falou-se em Mario de Andrade logo se pensa na Paulicéia desvairada... Assim por diante. No Pará, ao falar de literatura o nome de Dalcídio Jurandir salta à frente: mas nem Veríssimo é tudo no Rio Grande do Sul, nem tudo da Bahia é Amado; tampouco Mário ou Oswald de Andrade na “Semana de Arte Moderna” esgotam a rica diversidade e criaturada de São Paulo do café, que Portinari pintou. O Pará velho de guerra tem muito mais que Dalcídio, nosso “índio sutil” na inspirada saudação de Jorge Amado, na Academia Brasileira de Letras, na sessão de entrega do “Machado de Assis” de 1972. Intelectuais de grande qualidade e fidelidade amazônida, como Márcio de Sousa e Milton Hatoum adotam Dalcídio Jurandir como mestre.

O que se quer frisar não é o “maior” nem “melhor” representante de cada região. Mas a principal referência do mapa artístico e cultural. Por exemplo, acho que é consensual nos respectivos países que os poetas da Negritude, Aimé Cesaire na Martinica e Léon Damas na Guiana francesa são os principais ícones, pelo fato deles – sínteses intelectuais – interpretarem mais perto os sentimentos e esperanças (para não dizer utopia) de seus próprios povos. Como tantos outros, em diversas regiões da Terra, Cesaire e Damas tornaram-se país da negritude e guardas do “fogo sagrado” da criatividade por um complicado processo social, no qual o indivíduo (cria da sociedade) se faz criador cultural e símbolo vivo da coletividade.

'Mutatis mutantis' a sociedade humana imita abelhas e formigas que “elegem” dentre operárias uma destas últimas do reino para ser rainha da colmeia ou formigueiro. Entre a extrema simplicidade da vida dos insetos e a fantástica organização bizantina dos seres celestiais na alta imaginação das estrelas, subsiste a dura realidade e complexidade dos seres humanos na terra. Entretanto, a gente faz artes e ofícios intercomunicantes da cultura criando céus e infernos, inclusive. A fim de testemunhar a tragicomédia da vida, forjam-se intelectuais orgânicos como diria Gramsi: no caso da Criaturada grande, intelectuais orgânicos são herdeiros de pajés e país ou mães de santo... Que nem, na vida selvagem, grupos de animais de diferentes espécies tem lá seus guias e principais.

É antes a sensibilidade neurocerebral de certos indivíduos em simbiose com a coletividade de seu tempo e lugar (que a psicologia e a neurociência talvez possam explicar, ainda que palidamente) dotados da “ânsia” de viver e encontrar saída ao risco de vida, ao sofrimento e a fugir do eterno dilema da existência em curso para a morte. Aquilo tudo que se transforma em ser social e cria espírito de comunidade. Claro, homem nenhum é uma ilha e sozinho ninguém se salva nem vai para o inferno! Nem mesmo no mundo da animalidade, mãe da humanidade; não subsiste indivíduo sem espécie.

Isto posto, vejamos a passagem original da natureza à cultura. Na Amazônia, 11 mil anos desafiam nossa vã filosofia: a cabo de cinco mil anos de nomadismo pelo seio da planície a várzea pariu a civilização neotropical: pra não dizer que foi o rio ou a Cobragrande mãe dos humanos. Sendo a ilha do Marajó espaço natal da primeira cultura complexa, cacicados; da Amazônia. A arqueologia dá várias pistas tateando no escuro labirinto do mito da primeira noite do mundo... Mas, se não fosse a imaginação dos pajés, mais a utopia da Terra sem mal do bom selvagem tupinambá e a loucura sebastiana evangelizadora; a gente ainda estaria (para o bem e o mal) no mato sem cachorro.

É da revelação deste mundo sem fundo que trata o romanceiro do “índio sutil', aliás crioulo filho de branco e de negra. Dalcídio Jurandir, homem-síntese da amazonidade profunda e que queria ser tratado apenas como um romancista marajoara... Astúcia de caboco para ganhar o mundo, certamente para ser mais universal ainda. Vicente Salles informa que o escritor marajoara “não extrai desse universo qualquer imagem idealizada. As experiências foram vividas e, por isso, permitiram-lhe fazer com autenticidade a literatura do cotidiano, nos campos de Marajó, como nos bairros pobres de Belém.”... Diz o crítico com autoridade que tem na matéria, “não é possível escrever a história social paraense sem o conhecimento da obra de Dalcídio Jurandir”.

Em “Chão de Dalcídio” (revista Asas da Palavra, nº 4, Belém: UNAMA, 1996) Vicente Salles esclarece que no romance dalcidiano é marcante a presença de negros e mulatos. No entanto, a este mulato a intuição de Jorge Amado colou o apelido perfeito de “índio sutil”... O próprio Dalcídio preveniu que em “Chove nos campos de Cachoeira”, escrita na vila de pescadores de Salvaterra em 1939, depois de vagar pelas ilhas com um calhamaço de rascunho do romance; se encontra a obra toda em manifesto. No mesmo ano e lugar ele escreveu também “Marajó” (único da série em que Alfredo não aparece, para depois por astúcia do autor o alter-ego puxar o segundo romance para dentro da jornada do ginasiano de “Primeira Manhã”. Um choque frontal entre os anseios do menino ribeirinho e a educação oficial da cidade grande. O crítico vislumbra em “Marajó” um rebento amazônico tardio do “velho romance “Dona Silvana”, chegado até nós de fontes ibéricas, modificou-se certamente neste contexto em que se agitam pretos e mulatos, caboclos e brancaranas em geral.”

Aí estão nas letras brasileiras uma Amazônia ribeirinha, onde o rio e o mar pelejam sem parar na dialética da maré (fluxo e refluxo). E, sem contradição, diversas vezes como no rio de Heráclito, se harmonizam as opostas correntes na singela paz da tipacoema e grandeza cósmica da preamar. A um mísero passo, tão só, da conquista do paraíso na Terra... Quem não crê não vê o porto do Sol, o Araquiçaua. Onde deuses e humanos serão iguais no fim da história, segundo a promessa dos caraíbas!

Claro está que Dalcídio coletou as suas chuvas como a ilha bebeu na fonte das nuvens para fazer o milagre dos peixes, atrair homens gapuiadores e inventar a Cultura Marajoara há 1500 anos. Todavia, o romancista foi poeta e como tal teve um mestre, este também à semelhança do africano Senghor, do antilhano Cesaire e do guianense Damas um bardo da Negritude. Mas, a sutil diferença da negritude amazônida de Bruno e Dalcídio é que aqui o índio (como no Caribe) foi o primeiro escravo do branco, nosso “negro da Terra” cativo na Casa das Canoas. Celeiro da revolta da Cabanagem com os ventos que sopraram do Haiti (1804) – primeira república latino-americana – através de tropas paraenses mestiças da ocupação de Caiena (1809-1817) de regresso ao Pará.

Em suma, não dá para falar de Dalcídio sem seu mestre Bruno e de ambos sem a “Criaturada grande do Marajó, Ilhas e Baixo Amazonas”. A negritude poética de Bruno conflui com o romanceiro do “índio sutil”. Ambos autodidatas, o mestre do bairro do Jurunas (Belém) é 16 anos mais velho que seu aprendiz de Cachoeira do Arari e não se conheceram, provavelmente, antes de 1922 ou 1923, quando Bruno fundou a revista modernista “Belém Nova”, enquanto diretor do departamento de Cooperativismo, da secretaria estadual de Agricultura.

Bruno de Menezes foi propagador do surrealismo e este é mais um contado da negritude paraense com as Antilhas de Cesaire, onde André Breton andou bebendo inspiração. O catolicismo popular povoado de encantaria, orixás e vóduns pelo sincretismo faz ponte entre o altar da igreja e o terreiro. Deuses e santos se disfarçam na face oculta da feira do Ver O Peso atrás de tabuleiros e bancas de ervas, mandingas e frutas exóticas, aí o poeta de “São Benedito da Praia” foi grãomestre.
O discípulo escrevia: “Bruno de Menezes: Meu babalaô – como vão os orixás, meu velho? Me lembro ainda da bênção da Mãe de Santo naquela tarde sagrada. Venho vindo do mar. Meu corpo de encantou num filho de Iemanjá! É preciso que os oguns rezem, que a mãe de santo evoque o pai dos orixás para o filho de santo se desatuar e volte ao terreiro... Como vamos de “Não posso me Amofiná”? [bloco de carnaval]. Pai João está alegre porque o seu babalaô faz falação no jornal. Notável. Análise aguda. Abençoou, babalaô? Dalcídio.”

Com a morte do amigo Bruno de Menezes, em Manaus, 1963, a correspondência Rio-Belém não se interrompeu senão com a morte de Dalcídio Jurandir (Rio de Janeiro, 1979): Maria de Belém Menezes, filha do poeta, abasteceu o romancista marajoara com notícias e coisas do Pará. Com que a criatura grande foi exilada com seu fiel intérprete numa modesta morada carioca em Laranjeiras.

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