quarta-feira, 8 de setembro de 2010

As formas e as coisas: discurso acerca do tato

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Toda viagem é uma iniciação: o viajante deve ficar “vazio” de preconceitos para perceber o que a alteridade tem a lhe oferecer. O primeiro passo deve ir em direção ao conhecimento das coisas como um cego poderia aprender. Claro, o viajante não é cego. Mas na vida intra-uterina, tal uma câmara escura, ele não via nada. Nisto ele fará como oleiro que aprende do barro a inventar a cerâmica. Não foi o artista que ao fio do tempo se tornou mestre de ofício, mas o aprendiz da própria matéria que se fez artista no trabalho: o caminho é que ensina o caminhante a caminhar...

O carpinteiro ou marceneiro a trabalhar madeira bruta tem mais para aprender dela do que do mestre do ofício. Este um ensina a sua experiência,todavia o aprendiz saberá melhor da matéria que ele trabalha e do calo que faz às mãos. Madeira, barro ou metal age no corpo e mente do operário tal qual a ferramenta sobre a matéria-prima moldável. As mãos calejadas é que amadurecem o espírito nascido de uma vida vivida (que nem o cérebro que cria a mente e a mente que concebe o cérebro). Foi assim que o primitivo Homo habilis, filho da animalidade, se trans-formou no curioso e perigoso Homo sapiens, segundo dizem. Donde se concluiu deste processo vital: se há espírito em tal obra ele é filho do Homem.


Da noite dos tempos, os “tesos” da ilha do Marajó


reza a lenda, a primeira noite do mundo – reza a lenda amazônica – estava guardada pela Cobra grande dentro de um caroço de tucumã (Astrocarim vulgare), palmeira de muitos espinhos no tronco e nas folhas, forma touças inclusive em meio aos campos) em um lugar secreto, nas cabeceiras do rio. A filha da grande serpente das águas ia se casar e a mãe quis dar à filha a noite como dote de casamento, até então só existia um interminável dia, sem repouso e hora para edílio e amor. Já se vê que no paraíso selvagem a serpente, mãe dos homens; não faz má figura como fez no jardim do Éden, amaldiçoada por Javé. Não se sabe se esta estória já existia antes dos Padres chegarem a Amazônia, ou, ao contrário, ela foi inventada depois deles para fomentar a contra-cultura de pagãos e hereges.

Todas as versões concordam, sobre terem sido mandados três servos buscar a noite no fim do mundo. No entanto, há versões que em vez do caroço põem a noite dentro de uma cuia. Em chegando ao lugar, os homens acharam o caroço enfiado num recanto escuro, escutando estranhas vozes e rumores vindos de dentro do caroço: cheios de curiosidade, um deles quebrou logo a semente para ver do que se tratava. Mas, súbito; se espantaram com a nunca vista escuridão que ali surgiu e começou a se espalhar pela terra. Com ela vieram também as criaturas noturnas com coaxos, pios, urros, uivos, gemidos... Não há de ter passado desapercebido aos inventores do folclore amazônico o fato de que, um pequeno besouro, chamado caturra deposita seu ovos sobre a semente do tucumã, donde nasce a larva (comestível, chamada popularmente bararu) que se alimenta da amêndoa até a fase adulta, quando a caturra perfura a dura casca do caroço e sai o coleóptero voando, sempre à noite, pelos campos atraídos pelas lamparinas nas casas de vaqueiro. Restam ao chão, os caroços perfurados para os folguedos infantis, que inventam atirar á distância para escutar o assovio que surde contra o vento. Ou, os fogueteiros das vilas que usam tais caroços de tucumã furados a servir de “foguete de assovio”: motivo de muita caçoada, desavenças e até casos de polícia... Voltemos ao drama da primeira noite.

A Cobra viu logo que os mensageiros tinham desvendado o segredo. Como castigo dos servidores infiéis, dizem velhos caboclos que aprenderam a lenda que os índios seus antepassados inventaram, a Mãe d’água os transformou em macacos-da-noite. Coisa muito curiosa nesta sui generis viagem: que aqui o naturalista Alfred Wallace aprendeu diretamente da Natureza a teoria da evolução das espécies, a par de Darwin nas Galapagos; também os bichos já foram gente. E praticaram eles, por conta e risco dos pajés, a involução das ditas espécies. Talvez, a pena máxima de gente descuidada do privilégio humano, como a teologia condena ao inferno os malvados deste mundo. Mesmo assim, alguma parte do planeta Amazônia ainda há crença na geração espontânea (sapo vira peixe, morcego vira rato). Por arte mágica tem gente que, certas noites, vira porco, cavalo, onça, cachorro... Enfim, sem demasiada novidade; quando se sabe da existência mitológica dos gêmeos amamentados pela loba romana. E da máxima moral, segundo a qual “o homem é lobo do homem”...




Na verdade, no ventre da noite paleolítica a Boiúna depositou seu ovo: daí eclodiu o tempo arqueológico (Carajás e serra Paytuna; rio Gurupatuba, Monte Alegre, Pará; sítios de 9 mil anos antes da era cristã). Ninho de curupiras donde também nasceu e cresceu a “cobra grande” neolítica com suas datas pré-históricas: Ananatuba, 3.200 anos; Mangueiras (ilha Caviana e Contracosta da ilha grande do Marajó), ano 900 a.C; Formiga (Chaves e lago Arari), 100 anos a.C; Marajoara (lago Arari), no ano 400; Aruã (Chaves, Soure, Caviana e Mexiana), de 1400 até as primeiras décadas do século XIX.

As “fases” clássicas da arqueologia marajoara correspondem a diferentes técnicas e estilos da cerâmica encontrada em sítios arqueológicos ditos tesos de camutins; este esquema pioneiro deixou de ter maior interesse científico, mas ainda conserva importância didática. É uma tentativa de “visualizar” o passado pré-colombiano do delta amazônico. Ainda há muito a investigar. Mas os novos viajantes amazônicos não fazem ciência... Quando muito são repórteres curiosos de coisas esquecidas no fim do mundo, e que se metem eles a pensar livremente à modo de filósofo da chuva e da bubuia3 da maré.

No tempo arqueológico, o homem amazônico – que Alexandre Ferreira, classificou com graça um dia, em 1783, H. sapiens, var. Tapuya remetendo logo para Lisboa, com endereço final a Universidade de Coimbra (e pode ser que tenha chegado em Paris como mais adiante se vai dizer); pela primeira nau a bem da ciência a cabeça decepada de um nativo – começou assim a sua odisséia manipulando o barro dos começos do mundo (expressão de Jorge Amado, em discurso de saudação a seu camarada Dalcídio Jurandir, durante sessão solene de entrega do prêmio Machado de Assis, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro) para inventar a cerâmica. Foi, portanto, com o tato que esse criador original começou por modelar a sua arte ancestral. Nada mais natural, portanto, que o viajante comece sua viagem (à imitação do naturalista Alexandre Ferreira) indo a ilha do Marajó.


Um museu no fim do mundo


Uma boa maneira de começar a viagem na Amazônia será seguir os rastos do naturalista de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira; nascido na Bahia, que, em fins do século XVIII, veio ao Estado do Grão-Pará e Rio Negro realizar a monumental Viagem Philosophica (1783-1793), obra abnegada que a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão, em 1808, teria forçado a porta à pilhagem por ninguém menos que o respeitável Geoffroy de Saint-Hilaire. Alexandre Ferreira deu o primeiro passo da Viagem pela emblemática Ilha Grande de Joanes ou Marajó. Sem dúvida, esta é uma ilha-monumento que causa admiração ter ela atravessado os séculos até hoje, sem ter recebido as atenções oficiais que merece da humanidade. Ainda que fosse só pelo fato de ser a maior ilha marítimo-fluvial do planeta (área de pouco menos de 50 mil km², maior do que a superfície dos Países-Baixos), reserva natural da biosfera avant la lettre.

Ir hoje à grande ilha ancestral dos marajoaras sem visitar o Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, é como ir a Roma e não ver o Papa. Claro, o “museu do Gallo” não é o Louvre, trata-se de um museu comunitário, naif; que tem outro modo de história; criado por um extraordinário personagem em busca de um autor... O padre Giovanni Gallo, jesuíta italiano que descobriu o povo marajoara e se fazendo antes advogado dele do que pastor, como fora antes mandado em missão religiosa; rebelou-se contra a hierarquia diocesana que o queria mais comportado em relação aos conflitos políticos locais. Mas, sem se desviar do seu caminho traçado na convivência diária com a parte mais ínfima daquele povo lesado pela história colonial, a sua transgressão foi a ponto de ser desligado dos votos de obediência da célebre Companhia fundada por Inácio de Loyola. Sua suprema rebeldia foi por amor à obra de resgate da memória perdida de um povo extinto: o que por si só já valeria para a UNESCO e outras instituições de ajuda à educação e cultura dos povos sair correndo em socorro, sem mais necessidade dos pobres terem que emigrar ao estrangeiro para serem vistos e reconhecidos pelo mundo.

O qual museu foi capaz de sobreviver pela arte dos seus ceramistas, malmente encontrados nos vestígios dos sítios arqueológicos em tempo de se perder para sempre. Obra obstinada de um homem teimoso que escolheu o seu lugar para morrer, junto a um povo mais teimoso ainda em querer sobreviver ao desastre. Pois bem, em Cachoeira do Arari o sui generis “museu do Gallo” convida o viajante a “ver” o passado marajoara com as pontas dos dedos... Como um cego, talvez, experimentando pela primeira vez a escrita Braille...

Notou O Homem que Implodiu (nome do livro autobiográfico do criador do Museu do Marajó) que a gente marajoara tem por hábito pegar e tocar as coisas com a mão para bem compreender e definir do que se trata. O viajante não se enganou: é pelo sentido do tato que se deve começar a viagem... E assim se reconhecer “cego” neste fim de mundo e começo da (talvez) da ressurreição duma parcela da humanidade, recorrendo a ela com humildade e sabedoria... Então, o Museu do Marajó foi concebido para o povo marajoara ver e conhecer seu passado. Quer dizer – com o dito popular – “não é p’ra inglês ver”... Ou seja, “para enfeitar a vista”... O viajante anota.

O caminho é a viagem. Portanto, para chegar a Cachoeira do Arari o viajante da Amazônia deve ser informado, sobretudo, das “pedras” do caminho tal qual a marcha atribulada do bon sauvage tupinambá em conquista do pôr de sol. Ou seja, do Araquiçaua na Ilha dos Nheengaíbas. Quer dizer, não é fácil chegar e nem se hospedar ali. Pode ser que as dificuldades afastem do destino turistas, simplesmente interessados em comprar lazer e novidades a bom preço e facilidades de varejo. Mas, certamente a falta de conforto em Cachoeira não será empecilho a viajantes do mundo. Não há comodidades e preço baixo, a verdade seja dita, para ir a Katumandu, no Nepal; ou a Cachoeira do Arari, no Marajó: mesmo assim, vale a pena se for para encontrar os princípios do mundo ou de uma civilização perdida.

Chegar aqui é uma aventura, seja por táxi aéreo ou através da estrada de terra (com o “inverno” amazônico, lama) entre Foz do Camará e Cachoeira (que foi desnível duma laje do Arari e hoje está soterrada pelo assoreamento do rio) atravessando os campos. Aí, o roteiro pedirá como guia ninguém menos que o menino Alfredo, nas mãos dele – tateando o futuro como que jogando adivinhação de búzios –, o seu inseparável caroço de tucumã, personagem e alter-ego de Dalcídio Jurandir, no romance marajoara emblemático Chove nos campos de Cachoeira. Por esse caminho “espinhoso” com as palmeiras de tucumã dando adeuses sob o vento, sempre presentes na paisagem e na história; o viajante antes de ir diretamente ao museu como ponto final de peregrinação ao Extremo-Ocidente, no equinócio da “Partição1” do Novo Mundo; poderá visitar a cidade e o rio. E parar um momento na casa de Alfredo. Que foi oficina do romance do Extremo-Norte brasileiro, não por acaso, também moradia de infância do maior escritor dessa gente mestiçada de muitos povos na insularidade da zona tórrida.

Talvez o roteiro do naturalista Alexandre Ferreira seja do agrado do viajante, que virá pelo caminho fluvial do Arari matutando cismas desde a baía. O viajante, enfim, chegando ao “museu do Gallo” guiado ainda pelo escritor de Ponte do Galo e outros romances do menino marajoara Alfredo, será levado daí em diante pelo roteiro do padre Giovanni1: um caminho de volta ao passado a fim de achar uma saída ao futuro. Quem sabe? Começará por uma única porta por onde todos os viajantes hão de passar, a fim de percorrer o labirinto marajoara mais adiante até achar a saída.

Como o rio, aqui também no curso do tempo arqueológico, o viajante não será o mesmo depois de mergulhar uma vez... Mas, para isto, há que transpor a desafiadora porta e responder a duas questões-chave. Primeiro, qual a peça mais antiga do museu? A resposta o visitante achará imediatamente se for curioso e tocar o “computador” artesanal, em madeira, que o criador do museu inventou e construiu com as próprias mãos. Assim, será feita a descoberta geológica da terra. O visitante então “viajará” há milhões de anos, num instante, com a prova na sua mão! Poderá experimentar o tato do tempo sem obstáculo... Mas, em seguida, terá que responder à segunda questão: qual a peça mais nova do museu? Novamente o “computador” Gallo tem a resposta pronta e o viajante terá uma surpresa estonteante. Se – como disse o poeta Pessoa – “a alma não é pequena” e mover com as suas mãos o curioso engenho. Todavia, apesar disso tudo pode acontecer que o visitante permaneça “cego” ao que se queria mostrar. Paciência. Talvez fosse preferível retornar sem transpor aquela porta, pois tudo o mais aparecerá com uma ruína de um povo e região sem mais nenhum avenir... Se, contudo, o efeito da descoberta tiver sucesso: cada peça ali no silêncio dos séculos tomará vida nova. E o audaz viajante terá o seu troféu na lembrança eterna da viagem.




Como o feto humano (o viajante há de lembrar que já foi assim) pouco a pouco desenvolve o sistema nervoso e, provavelmente, começa pelo tato a compreender o mundo aonde irá desembarcar. Assim também o primitivo habitante amazônico começou a experimentar o barro milenar deste mundo para modelar a civilização neotropical que ele deixou como certidão de nascimento e herança a humanidade.

Ainda não se decifrou a “escrita” marajoara a fim de entender a mensagem da humanidade original que aqui plantou sua raiz. Sem ser profeta ou pajé, diante de um monumento neolítico feito de aterros milenares de barro dos começos do mundo surtos pelos campos alagados, como “ilhas” à distância ou camuflados na Jebre2, às ilhargas dos mondongos3, pelo incrível engenho e intuição dessa gente que o mundo esqueceu, o viajante se sente responsável pela memória do lugar, como também pelos destinos do mundo. Assim, com o sentimento da biosfera ameaçada no mundo, ele decide velar pelos sítios arqueológicos do Marajó antes que eles acabem e a diversidade cultural da Terra seja, irremediavelmente, lesada.


A notícia histórica do Arari ou teoria da cobra grande


Arari é palavra aruak significando “rio das araras” (de ara, arara; e ari, rio): assim, as araras estão quase a acabar mas ficou o pleonasmo, quando se diz rio Arari é o mesmo que rio “rio das araras” (sic). O que fazer? Tradutor, traidor... Dizia o sábio português da Bahia, Alexandre Ferreira, sobre o rio Arari1:“É galante a teoria do rio que ouvi a um índio sendo perguntado pela razão daquelas voltas, e portanto escrevo: A Ilha no seu princípio, diz ele, não tinha estes rios mas tinha pela terra dentro infinitas cobras: estas obrigadas das secas corriam do centro para a costa a buscar a água: no caminho que faziam de rastos pela terra deixavam com o peso e grandeza dos corpos impressas nela as suas figuras, assim mesmo tortuosas, e implicadas em torcicolos, como elas são. Caíram as águas das chuvas sobre este rasto que achavam feito, e no seu princípio abriram regatos: engrossaram depois os regatos, e ficou sendo total o grande rio o que não fora, no princípio, mais que um regato da grossura de uma grande cobra.”

O rio Arari foi outrora a primeira parte colonizada da ilha do Marajó, com os primeiros currais de gado levantados pelo colono Francisco Rodrigues Pereira, em 1680, timidamente diante do receio de ataques por parte dos índios bravios, desertores e escravos que viviam refugiados ali. Ora, se a tomada de São Luís do Maranhão data de 1615 e a fundação de Belém, na Amazônia, de 1616; faça o viajante a conta para entender quanto tempo resistiram os nativos à invasão das ilhas, isto sem falar de antes da chegada dos europeus face o avanço dos Tupinambá. Afinal doada a principal delas (maior do que a Holanda) ao ministro d’el-rei Afonso VI, que foi o patriarca dos barões de Joanes que aqui nenhum deles veio visitar em nenhuma vez. Contentados a imaginar a sua longínqua posse distribuindo sesmarias a terceiros através de descansados procuradores no Pará.

Vem daí talvez o aforismo que os caboclos ladinos (praticantes assíduos do abigeato) difundem à beça: os caboclos sabem que os Brancos não sabem... Isto é, ignorância com ignorância se paga. Senhores de latifúndios imensos, os fazendeiros não conhecem mais a sua propriedade do que às proximidades do “corpo da fazenda” e algum retiro5 entregue a criados zelosos. Restam ainda porções ermas isoladas, onde o caboclo mal lembrado de seus antepassados indígenas leva a vida, a bem dizer, fora do mundo no rescaldo da ruína de velhos costumes. Esses feudos de recíprocas ignorâncias são retalhos, talvez, de um passado perdido... Que por alguma maneira misteriosa ainda poderá dar algum futuro aos lesados dos Contemplados1 e enganados das Missões. Quem sabe?

Quando a temporadas das chuvas começa, entre os fins de dezembro até junho, as águas do rio Anajás-Mirim (braço do Anajás Grande e tributário do Arari) em vez de descer “sobem” para o “fundo de prato” com que a ilha se assemelha, até inundar todo o Lago. Só depois então deste último estar farto a corrente desce para a baía do Marajó aonde o rio vai desaguar o seu contributo ao Mar Doce. Na margem do Arari se acha histórica fazenda fundada pelos frades que vieram de Quito, depois da famosa jornada de Pedro Teixeira, de 1637 a 1639. Chamada a fazenda de Nossa Senhora das Mercês, onde o folclore fez morar a Cobra grande debaixo da capela. Diziam os crentes da assombração, antigamente, que não se deve retirar a imagem da santa do altar! Se não, a “monstra” revira-se debaixo e leva embora o barranco com igreja, fazenda e tudo na erosão do rio abaixo...

Muitos rios irrigam a ilha do Marajó, sento o Arari, entretanto, o de mais importância inclusive pela posição em frente à cidade de Belém. Pela margem direita os seus tributários são o Anajás-Mirim, São José, Tucunaré, Cururu, Salitre e Muirim. À esquerda se encontram cursos d’água donde, o igarapé do Severino, Guaiapi, Mauá, Murutucu. Gurupá e Caracará, sem contar outros menores.

Pela costa da baía, abaixo da foz do Arari, contam-se os rios Camará, Maruacá, Guaruari; onde fica o lugar de Condeixa, o Xipocu, junto de Monsarás, o Jobim acima de Salvaterra; o Paracauari, que recebe à direita o Carnaoca e o Jacitaratuba. E pela margem esquerda o Maratacá. Ainda pela baía abaixo do Pesqueiro o Igarapé Oaitama e o rio Cajuipe ou Cajuúna como ficou mais conhecido. Depois o Camarupi, o Cambu, rio de larga embocadura; o Umerituba, e o Jaraú; onde começa o cabo Maguari e o Oceano. O que caracteriza esta ilha como a maior do mundo reunindo rio por oeste e mar pelo leste.

Pela contracosta adiante surge o rio Guaiapoava e um braço que foi chamado rio dos Aruãs e também um ramo à esquerda em direção ao Lago Arari, que é hoje o canal Tartarugas. Segue-se o Ganhoão, o Cajutuba, o Arapixi, o Camarão Tuba e o furo Cajuúna que sai ao Rio dos Anajás, até a ponta do Parauaú. Ou seja, o Rio Pará.

O rio dos Anajás ou Anajás-Grande recebe águas dos rios Cururu e Mocoões, caudalosos; e cursos menores como o Ipecaquara e o rio dos Camotins (este que tem seu nome assim devido à notável ocorrência de tesos ou sítios arqueológicos, da extinta civilização marajoara). Cumpre não perder de vista o fato de que esta ilha grande não apenas excede em superfície os Países-Baixos como também possui topografia peculiar, com uma pletora de rios, canais naturais e formações lacustres de influência marítima inclusive que lembraria, ainda que de longe, a geografia neerlandesa.

Ao tempo da Viagem Filosófica, o Anajás andava “nas meninas dos olhos” do Comandante Florentino da Silveira Frade, diz Alexandre Ferreira. A preocupação da época leva pensar na exploração das riquezas naturais e a agricultura. Segundo parecia as terras centrais da ilha servia para plantar cacau, café, arroz, tabaco e extrair madeira de construção.

Devemos nos lembrar que o relato em tela está baseada na monografia de Alexandre Ferreira de 1783 e que o café viera de Caiena, clandestinamente, furtado pelo sertanista paraense Francisco de Melo Palheta cerca de 1723, há sessenta anos da Viagem Filosófica. Nessa época havia três “fábricas” de lavrar madeira, que serviu à construção da fortaleza de São José de Macapá. As matas dos Anajás tinha muito timbó-titica, timbó-guaçu, e “muita casca preciosa”, porcos selvagens, veados, antas, onças, onças, e “inumeráveis espécies das outras classes de animais”. A exploração econômica de “infinitas” riquezas no Século das Luzes era a grande moda. E as viagens às regiões exóticas longe de satisfazer o espírito procuravam interessar governos e particulares a desenvolver colônias de exploração e realizar negócios de grandes lucros.

A foz do rio Anajás deságua em frente da cidade de Macapá com “infinitas ilhas” e rios até o Parauaú, abaixo de Breves junto ao canal Tajapuru, a caminho de subida do rio Amazonas. Ou de Macapá e das Guianas pela costa do mar. Aqui, a ilha do Marajó faz outra ponta baixando o Rio Pará para baixo o rio Guajará pelo Mutuacá, segue-se o Pexi costa abaixo, até o Paracaúba, em São Sebastião da Boa Vista, adiante do rio Muaná, Atuá e dentro neste o rio Anabiju, segue-se o Igarapé grande Paruru, “despois o rio Marajó-guaçu, que dá o nome a toda a Ilha”, informa o naturalista Alexandre Ferreira. Afinal o Igarapé-Puca (Comprido, na Língua Geral) donde o sábio baiano da Universidade de Coimbra partiu no circuito que o viajante da Amazônia acaba novamente de percorrer entrando pelo rio Arari, contando mais de “cinqüenta e tantos” rios, sem incluir igarapés e lagos.

A civilização lacustre: Ou a peleja da natureza e a fazenda

Conforme a cartografia da Carta da Ilha, que “a seu modo” o Comandante Florentino debuxou, quem entra pela boca do Arari acha à margem esquerda os lagos Murutucu, Mauá (em cujo rio foi levantada a primeira fazenda de gado na ilha, em 1680), Guaiapi. Que também são nomes dos respectivos rios, pela peculiaridade de ser a água da chuva que abastece depressões da terra criando dos ditos “lagos” que servem de cabeceira ou, melhor dizendo, reservatório. O acidente geográfico mais interessante da ilha do Marajó é o grande lago Arari. Ao qual os caboclos chamam apenas de “o Lago”. Como, outrora, os aruaques do Amazonas não davam nome particular ao rio grande (Paraná-Uaçu, dos tupis), para o chamar somente Guiena (o Rio).

Seguindo para o centro da ilha se acha o lago Apeí e à direita do Arari, o lago de Santa Luzia, e enquanto à esquerda fica o de Santa Isabel. O segundo lago em grandeza é o primeiro em mistério: o Guajará. O qual merece, então, ser tratado à parte por ser lugar sagrado das populações tradicionais. Uma velha lenda indígena conta que, em tempos muito remotos, viram cair do céu vinda de alto mar uma “estrela” sobre o lago Guajará. Se isto fosse hoje, haveria quem pensasse logo em “disco voador”, mas os pajés interpretaram apenas como uma mensagem do infinito... Que em contato com a água fria a tal estrela cadente explodiu e se despedaçou em diversas partes.

Os pajés, então, procurando depois de vários dias recolheram fragmentos achados pela margem do lago e confeccionaram deles machados de pedra, mágicos; capazes de operar muitas maravilhas. No Museu do Marajó ainda se encontram machados como esses, com a lembrança antropológica das tais “pedras de raio”. Com que a crença popular acreditava serem esses machados de basalto feitos de matéria sideral (que, de fato, podem ser se a astrofísica e a geologia encontram entre si explicação comum para a formação astronômica da Terra).

Com tão extraordinária história ornando a sua fama, o lago Guajará se converteu em lugar mágico por excelência, na ilha do Marajó. Onde diversos seres encantados têm lá o seu habitat sobrenatural. Os antigos moradores, por exemplo, acreditavam que entre o lago e o rio Paracauari ou Igarapé Grande, afastados um do outro por quilômetros de campinas e matas, existiu algum dia uma passagem subterrânea. Causa do mortal redemoinho ou “giradouro” no leito do Igarapé Grande que separa Soure de Salvaterra: para uns, esse rebojo célebre por muitos acidentes de navegação, é moradia da Cobra grande. A outros, trata-se de portal do reino de seres telúricos chamados caruanas1. Os caboclos relatavam estranhas aparições de remos e pedaços de canoas naufragadas na baía, que, entrando supostamente pelo “fundo do rio”, chegavam até às margens do Guajará, inexplicavelmente.

Um curioso capítulo da luta que se travou entre índios e criadores de gado tem o lago Guajará como foco: trata-se do invento da lenda do Boi Selado. Um animal encantado que saia do lago a fim de desencaminhar rebanhos domésticos. Contam que, em certas noites de lua, o gado curraleiro metido ao curral mansamente, ruminava deitado em calma; mas, de repente ficava arisco, se espantava à-toa. Arrebentava a porteira e a boiada estourava, desembestava pelo campo enluarado se perdia pelo balcedo adentro... Não havia cavalo e nem vaqueiro que alcançasse a manada. Era o Boi Selado, só podia ser (ainda que um descrente jurasse ter sido onça querendo atacar os bezerros, não havia quem o acreditasse, ainda mais quando um pajé jurava ter visto o Boi Selado à frente do curral). A assombração do boi do lago, além de espantar e amoitar o gado longe da fazenda ainda trazia peste e outras doenças para definhar o rebanho...

Até a metade do século XX, a luta pelo controle das águas3 entre fazendeiros e pescadores ainda envolvia o célebre lago encantado. Os primeiros, com ajuda do governo criaram serviço de dragagem em Marajó, do antigo Departamento de Portos e Vias Navegáveis. Que entrou a “limpar” os aturiais e a dragar canal para o dito lago encantado, diante de olhares horrorizados dos caboclos. Que, mudos, assistiam alguma coisa como a profanação de um santuário... Então – dizem alguns – se viu o poder dos encantados. O que as maquinas cortavam e capinavam durante um dia, parece que crescia em dobro na noite... Até que, os Brancos vencidos em seu ímpeto mecânico e desenganados da peleja contra a pujança dos aningais e balcedos bateram em retirada. Ficaram ao léu umas quantas dragas enferrujadas, que as chuvas e a vegetação selvagem cuidaram de apagar, pouco a pouco, da paisagem.

Os mais lagos são, do Guaiapaúba ou rio das Tartarugas, onde houve um lago no braço que chamavam dos Aruãs (o qual manadas de búfalos devastaram). Ao tempo das chuvas, as águas passavam para os lagos do Mocoão e Cururu. Outros rios também têm os seus lagos, que são reservatórios ou “cabeceiras” dos mesmos rios: Ganhoão, Guaiapuca, Anajás, Taraira, Canga, Jacaretuba, Camotim, Maguari, Pracuuba, Atuá e outros. Toda a ilha por dentro se interliga numa rede lacustre, cujos lagos inventam rios em direção ao rio-mar. Por isto, o índio de Alexandre Ferreira deduziu a “teoria” das cobras do Marajó-Guaçu, do Jaburaicá, do Quio, e Caraparó, do Tarauá, do Jobim, do Jatuba e do Paracauari; os lagos grandes das Frecheiras, Laranjeiras e Três Irmãos e Morotim-pecu, e Jacarés, e lago de Carnaoca, e do Cambu, e outros. Sendo que o Arari e o Guajará são os de maior grandeza.

Alexandre Ferreira, em sua viagem, pôde se assegurar através de Florentino Frade e outros informantes que com exceção de um, ou dois rios, a maioria tinha “duas ou três cachoeiras”. Na verdade, simples quedas d’água. Eram travessões baixas que se podiam ultrapassar com a maré enchente. Na atualidade, não há mais tais “cachoeiras”. O que significa dizer que a erosão dos rios os está aterrando inexoravelmente em toda a ilha. Em 1783, do Paracauari abaixo até o cabo Maguari e deste para o Amazonas, voltando ao Atuá, existiam cachoeiras ou beira de pedras. Desde o Paruru abaixo até o Igarapé-grande ou rio Paracauari, abaixo de Salvaterra, há uma barreira de pedras, donde a parte mais característica chama-se Ponta de Pedras, que avança para o mar.
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Glossário:

Teso - Sítio arqueológico formado por aterro sobre savanas inundáveis, onde se encontram cemitérios dos índios marajoaras e vestígios de suas aldeias; as cerâmicas mais antigas datam até 1.100 anos a.C., na chamada fase Ananatuba.

Boiúna - do tupi “boi”, cobra, e “una” negra; a cobra grande mitológica em referência à lenda da primeira noite do mundo.

Camuntins - urnas funerárias achadas em aterros arqueológicos servindo de cemitérios e aldeias (cf. Betty Meggers e Clifford Evans; Anna Roosevelt e outros). Os tesos são monumentos neolíticos da maior importância para o estudo do homem do Novo Mundo. É erro confundir “camoti” (urna cerâmica para enterramento secundário em culturas circum-Caribe) e “igaçaba” (vasilha para depósito de água, em língua tupi ou Nheengatu). Pesquisas em curso pelo Museu Goeldi apontam para revisões consideráveis: as “fases” podem ter sido contemporâneas umas às outras. A fase (ou estilo, melhor dizendo) marajoara (nome arbitrário) teria chegado até cerca de 1600, lado a lado com a cerâmica “decadente” dos Aruãs... O eventual encaminhamento por Brasília e reconhecimento pela UNESCO da candidatura da ilha ao título de reserva da biosfera, em atendimento à reivindicação dos próprios marajoaras será uma maneira de resgatar e preservar esse importante passado neotropical.

Bubuiar - verbo de raiz tupi, através da Língua Geral; significa vagar ao sabor da correnteza: a etimologia se refere a coisas flutuantes sobre a superfície das águas.

“O testamento de Adão” - tratado de Tordesilhas (1494) contestado pelo rei François I, da França, dividindo os ultramar entre Espanha e Portugal; homologado pelo papa Alexandre VI – cujos limites por um meridiano a oeste de Cabo Verde passaria supostamente às proximidades da Ilha do Marajó, cortando as atuais cidades de Belém (Pará) e Laguna (Santa Catarina), no Brasil.

Dalcídio Jurandir - escritor marajoara de expressão universal, prêmio “Machado de Assis” da Academia Brasileira de Letras, pela série de romances denominada Extremo-Norte, foi incentivador intelectual da obra literária de Giovanni Gallo; nasceu na ilha do Marajó na vila de Ponta de Pedras (1909), cresceu em Cachoeira do Arari e faleceu na cidade do Rio de Janeiro (1979).

Giovanni Gallo - missionário jesuíta nascido em Turim, Itália (192?), naturalizado brasileiro, fundou o Museu do Marajó às margens do lago Arari, no município de Santa Cruz do Arari; transferido em 1981 para Cachoeira do Arari; morreu em Belém (2003) e foi sepultado ao lado do referido museu. Autor de "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara", "Marajó, a ditadura da água" e da autobiografia "O homem que implodiu". Conforme testemunho de Maria de Belém Menezes, filha do poeta Bruno de Menezes, uma correspondência entre Belém e Rio de Janeiro serviu de estímulo intelectual do escritor Dalcídio Jurandir para o padre dos pescadores de Jenipapo transformar em livro os artigos e reportagens que escrevia na imprensa regional, contribuindo assim à divulgação do Museu do Marajó.

Jebre - Brenha da mata ciliar geralmente submersa ao tempo das cheias, próximas à Contracosta da Ilha do Marajó.

Mondongos - Formação palustre nas partes mais baixas da microrregião de Campos do Marajó, berçário da fauna aquática por excelência.

Origem dos rios - Trecho da Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó (1783), primeiro trabalho do naturalista na Amazônia, publicado em separata da Viagem Filosófica.

Marajó - Dizem os cabocos em português “do” e não “de” Marajó. O motivo é simples: a toponímia tem origem no índio “malvado” que ali habitava, segundo a geografia dos Tupinambá (justamente o bom selvagem de Rousseau e Montaigne): marã, é raiz de “mau”, “malvado”; com a desinência “yá/ yu / yó”, que significa gente, povo. A maldade dos ilhanos era defender as suas aldeias da invasão dos que as queriam conquistar, armavam-se eles de mortíferas setas envenenadas de curare lançadas com zarabatanas em emboscadas. Et pour cause, a contra-propaganda já existia na Amazônia quando os europeus chegaram por aqui.

Abigeato - Costumeiro roubo de gado, com fundamento na história colonial do lugar (que verdadeiros criminosos aproveitam nos seus negócios ilícitos, fomentados ademais por contrabandistas a custa de miseráveis cabocos).

Corpo de fazenda - A “casa grande” ou sede da fazenda com o curral principal e o gado manso.

Retiro - Extensão da fazenda com casa de vaqueiro e curral.

Contemplados - Senhores aquinhoados pela privatização das Missões dos jesuítas, expulsos do Pará em 1757.

Fábrica - Serraria rústica onde o machado e a serra manual manobrada por trabalhadores (geralmente escravos) eram as principais ferramentas. Existe um rio ou confluência da foz do Curral-Panema com o Arari, junto à ilha de Sant’Ana; que recebe o nome significativo de Rio da Fábrica ou Rio Fábrica, neste caso era uma oficina de sela de propriedade dos Mercadários sesmeiros daquela ilha.

Caruana - nome que se dá na Pajelança (conjunto de crenças e procedimentos xamanísticos indígenas, que constitui a arte terapêutica e mágica dos pajés) a espíritos telúricos (animais, plantas e seres mágicos) da encantaria marajoara.

Balcedo - terreno pantanoso, de vegetação cerrada, onde o “gado do vento” (selvagem), arisco; se refugiava; conforme ensina Vicente Chermont de Miranda, no Vocabulário Paraense.

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