domingo, 15 de agosto de 2010

O dia que o Grão-Pará se tornou Amazônia brasileira

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"há um esboço de revolução, vem a contra-revolução que reprime e extrai algumas poucas teses do movimento inovador e as aplica a seu modo, conciliando e esvaziando o conteúdo histórico", José Honório Rodrigues, apud Carlos Guilherme Mota.


Segundo foi estabelecido nas efemérides paraenses, no dia 15 de agosto do corrente se completariam 187 anos em o Grão-Pará deixou de ser província de Portugal e passou a ser a Amazônia brasileira. Mas, o fato corresponde à verdade histórica? Persiste controvérsia sobre a data e circunstâncias da verdadeira Adesão do Pará à independência do Brasil, no ano de 1823, quando a colônia portuguesa se integrou ao Império brasileiro. Do ponto de vista da resistência anticolonial paraense, o movimento de 14 de abril pró-Independência pronunciou-se claramente nas ruas da Capital (restando nos nomes de rua no bairro do Umarizal) e proclamou soberanamente, com a formalidade necessária, a adesão no dia 28 de maio, na vila de Muaná (onde existe monumento e praça pública alusiva à data com o nome dos heróis), na ilha do Marajó: o que aconteceu posteriormente foi a brutal repressão colonialista ao povo paraense com mortos, feridos e condenados à morte sendo deportados para o cárcere de São Julião (Portugal). Enquanto isto, no Maranhão, o almirante Cochrane com frota mercenária contratada por dom Pedro I, Maranhão despachava o tenente John Pascoe Greenfell ao Pará, com fingimento, dar ultimato à guarnição militar fiel ao regime de Lisboa.

Que fez, então, em Belém do Pará o agente imperial inglês? Em vez de logo contatar os nacionalistas e lhes oferecer garantias à Adesão paraense já manifestada em 14 de abril e proclamada pelas lideranças do povo em 28 de maio, como era de esperar, e com estes ao lado forçar rápida capitulação portuguesa, foi o mercenário sem delongas ameaçar de bombardeio a Cidade. Em seguida ele parlamentou com o governo colonial e ao cabo da confabulação saiu o vergonhoso ato de “adesão” de 15 de agosto de 1823... A Data-Magna e feriado estadual dos paraenses desmemoriados.

Na realidade, arrancado debaixo de canhões e baionetas alugadas a dom Pedro I, o acordo anglo-português de falsa capitulação e rendição das forças coloniais portuguesas no Pará abafa e tira de cena a luta independentista do povo paraense coerente com sua antiga história em sempre pertencer a velha terra dos Tapuias ao grande país do Cruzeiro do Sul (conhecido outrora pelos índios da Amazônia como o Arapari). Assim, com astúcia de parte a parte em prejuízo do povo, velhos coloniais foram mantidos no governo sob o novo pendão imperial à sombra tutelar da Inglaterra. Ora, o reino de Portugal e o Reino Unido tem longa tradição de aliança e, curiosamente, nosso primeiro imperador era príncipe herdeiro do trono português (depois de renunciar ao trono brasileiro dom Pedro I do Brasil foi ser Pedro IV de Portugal). Todavia, a repressão aos nacionalistas paraenses não cessou, desde então reforçada pelos mercenários ingleses a proteger o antigo regime colonial travestido em brasileiro. Eis o simulacro desta “adesão” pra inglês ver... Até a partida da tropa de Greenfell, quando os nacionalistas derrubaram o governo portuguesista e o agente de Cochrane voltou à cena furioso, a cometer barbaridades contra o governo do povo, humilhando o líder paraense cônego Batista Campos amarrado a um canhão com morrão aceso, fuzilando aleatoriamente a uns e outros até terminar pelo frio assassinato de 252 patriotas nos porões do brigue “Palhaço”, a fim de impor terror à população. Uma vergonha nacional para ser considerada Data-Magna a causa de tamanhas arbitrariedades! Desde então, uma série de perseguições e crimes em nome do governo do Império levando à agitação e paroxismo popular (objeto de estudo do Barão de Guajará, cujo solar é sede do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP); dos célebres “Motins Políticos” que levaram à convulsão popular da Cabanagem). Certo, em 12 anos – de 15 de agosto de 1823 a 14 de agosto de 1835 – o Pará velho de guerra pegou fogo e o povo assumiu o poder em armas (1835-1836). Historiadores conservadores escondem os crimes do Império no genocídio dos cabanos (30 mil mortos numa população de, aproximadamente, 100 mil habitantes) sob falsa acusação de separatismo: na verdade, ao contrário, uma longa luta popular para a brava gente do norte ser brasileira de parte inteira.

A míngua acadêmica

A míngua de interesse acadêmico sobre questões como esta dificulta revisão da historiografia petrificada em compêndios oficiais, mas revela permanência da ideologia neocolonial que animou a criação do respeitável Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) sob mecenato de dom Pedro II. Contudo, sem renegar o contributo do IHGB e seus congêneres nas províncias do Império na formação da história da História do Brasil. Mas, ultimamente, vem prosperando contracorrente a partir de Capistrano de Abreu, o primeiro historiador que deu importância a elementos populares menos elitistas descrevendo a história socioeconômica do Brasil.

A novidade historiográfica implica na real inclusão de índios, negros, mestiços, cristãos-novos, moçárabes, missionários e aventureiros antes marginalizados nos principais acontecimentos que levaram à invenção do Brasil e da Amazônia. As duas colônias portuguesas nas Índias Ocidentais nascidas sob os termos do Tratado de Tordesilhas (1494-1750) e o mito do espaço vazio; ainda escondem evidências da civilização neotropical pré-colombiana.

O mito das “amazonas” apagou a existência de milhões de amazônidas e extingui milhares de línguas e culturas diferentes do “rio Babel” (Amazonas). Sonho sebastianista de conquista de corações e mentes selvagens pelo visionário padre jesuíta Antônio Vieira, a fim de edificar desde as bases ultramarinas o “Quinto Império do Mundo” – messianismo marrano que levaria o payaçu dos índios a se aproximar do rabino português de Amsterdã, Menasseh ben Israel; com a famosa teoria segundo a qual índios americanos descendem de judeus do Cativeiro da Babilônia, as Tribos Perdidas; e a ser condenado pelo Santo Ofício por heresia judaizante – ; debaixo do domínio espiritual do Bispo de Roma e soberania territorial do rei de Portugal.

Não viu o padre grande, todavia, grande crítico da cegueira de colonos e cortesões, que sua utopia evangelizadora (filha da cultura apocalíptica ocidental) caia como luva à mitologia de seus índios protegidos que ele buscava “resgatar” em rios distantes a catequizar para maior glória de Deus e grandeza material do reino de Portugal mediante arriscada conversão e investimento econômico dos judeus. Operação político-teológica que, supostamente, apressaria o parto do reino de Cristo na terra revelado no livro do Apocalipse.

Antônio Vieira, pois, sem a controvertida missão do Grão-Pará (1652-1661), a famosa lábia e seus notáveis delírios retóricos fazendo dele o elogiado “imperador da língua portuguesa” (segundo o poeta Fernando Pessoa), a criticar o barroquismo europeu decadente pelo emergente barroco latino-americano nos famosos Sermões; por certo, não seria ele o Padre Vieira que se conhece. Seus nove anos como missionário na Amazônia se não o qualificam para ensinar como escrever História do Brasil (como os dez meses apenas do naturalista von Martius a palmilhar a região amazônica, desconhecida na corte do Rio de Janeiro, credenciaram o nobre alemão junto ao IHGB), pelo menos o payaçu dos índios deveria ser mais consultado a respeito da história indígena brasileira dos tempos de ruptura da incontornável “linha” de Tordesilhas. Ou seja, sem o inverossímil acordo do padre grande e os sete caciques da ilha do Marajó (27/08/1659) custa crer que o esperanto jesuítico chamado Nheengatu ultrapassasse as ilhas do Pará para dentro do Amazonas, servindo de ponte à língua de Camões rio acima

A dialética das aldeias das missões foi o grão Pará revolucionário a longo termo. Ao se observar a germinação da semente catequista em chão tapuia e o crescimento da safra pode-se ver o peso da força bruta dos cabanos em gestação nos antigos acontecimentos pertencentes à história oral raramente transcrita e bem compreendida na poeirenta crônica colonial. Origem secular do papel precursor do cônego Batista Campos como caudilho da Cabanagem e fecundação eclesial de base da chamada teologia latino-americana da Libertação.

Ao contrário dos europeus, o Bom Selvagem não buscava o paraíso perdido; mas achar o país do futuro, dito Yby Marãey (terra sem mal) profetizada por caraíbas praticantes da bárbara eucaristia antropofágica. Afinal de contas, o evangelho jesuítico não livrou a religião dos índios da diabolização imposta pelo mau juízo e ignorância dos frades capuchinhos da França Equinocial, porém os pajés-açus souberam assimilar a religião do colonizar e inventar com ela o catolicismo popular onde coexistiram deuses africanos, santos da igreja e santidades indígenas. Desde então, a biodiversidade ficou sendo irmã da diversidade cultural brasílica.

A revisão historiográfica há de saber, fundamentalmente, se de fato menos de uma centena de portugueses e mamelucos de Pernambuco sob pavilhão da União Ibérica foram bastantes para conquistar o populoso e selvagem “rio das amazonas”, um novo Nilo em nascimento no novo continente. Ou, pelo contrário, se foram muitas vezes astutos caciques e caraíbas que atraíram aventureiros e corsários estrangeiros para suas causas na ambição natural de obter aliados dotados de armas de fogo e grandes navios à vela até solução final do conflito de fundo étnico o mais antigo da região. Dados coloniais e pesquisas antropológicas demonstram que povos indígenas tapuias (não-tupis) das Ilhas e do Amapá ansiavam por se estabelecerem na margem meridional do rio Pará e que, por outra parte, invasores tupinambás vindos através do Nordeste guerreando contra os tapuias em busca da mítica “terra sem mal” pelejavam intensamente pela posse do vasto território ribeirinho, portal da Amazônia.

A gente da terra Tapuia (Amapá e Pará) praticava guerra de guerrilhas, à moda Aruak naturalmente, com zarabatana e flechas envenenadas contra os invasores, por este fato bélico ficou célebre na tradição oral tupinambá o índio inimigo de emboscada (marãyu / marajó, homem “malvado”), herói inimigo invejado que produzia terror e ódio ao bravo guerreiro conquistador da Amazônia. Hoje historiadores com auxílio de recentes pesquisas sobre arqueologia e antropologia amazônicas do período pré-colonial podem verificar que é insustentável a tese da conquista portuguesa, com tão parcos recursos próprios, se não contasse com a aliança indispensável do Bom Selvagem. Eis o paradoxo amazônico: sem índios e sem mitos a história seria outra!

Sem desmerecer o papel do soldado português, é lógico que os portugueses colonizaram a Amazônia, a partir de 1640, com a restauração da independência de Portugal. Mas a conquista foi indígena e mais sangrenta do que parece. Sem arcos tupis e remos tapuias a manutenção do território seria impossível, cuja pacificação impossível pelas armas acabou sendo promovida pela atuação, à beira da loucura, de missionários movidos pela fé e sertanistas façanhudos seduzidos pela descoberta de ouro.

A realidade histórica até a segunda metade do século XVII que a Cidade do Pará (Belém) contava apenas com algo em torno de 80 “habitantes” (portugueses), fora os padres, escravos (indígenas cativos) e índios. Ou seja, multidão de diversas nações indígenas livres, em guerra permanente entre si ou ao lado de aliados estrangeiros também estes em luta com seus concorrentes europeus pela posse do território. A “linha” de Tordesilhas não permitia a Portugal ultrapassar a baía do Marajó: mas, debaixo da bandeira da União Ibérica, o capitão Pedro Teixeira representando as armas de Portugal partiu de Belém do Pará (1637) e retornou (1639) de sua célebre viagem a Quito (Equador) plantando marco na futura fronteira do Brasil com o Peru e Colômbia. Só? Não. Pedro Teixeira e seus oficiais e soldados foram levados e trazidos por 1.200 animosos índios tupinambás, os quais apenas refeitos do massacre que sofreram em mãos dos portugueses, entre outros o próprio Teixeira; em represália ao levante indígena de 1619, liderado no Maranhão pelo cacique Pacamão e no Pará por Guaimiaba (Cabelo de Velha); não se furtaram a lutar ao lado dos antigos inimigos Perós (lusos) pelos quais haviam abandonado os amigos Mair (franceses).

O que sucedeu, então? Que foi preciso esperar o início do século XX para começar a compreender a saga do Bom Selvagem (Curt Nimuendaju, São Paulo, 1920). Conservar a lógica da historiografia colonial, na História do Brasil, não tem futuro. A verdade histórica (grosso modo) é que foi o índio que deu o território, o negro enraizou a cultura e o português inventou o estado brasileiro, todos estes elementos juntos inventaram o Brasil e integraram a Amazônia, desde a ruptura da União Ibérica (1640): de modo que a Adesão do Pará, em 1823, foi precedida de 164 anos desde o fim da guerra hereditária entre tupis e nheengaíbas, em 1659, conjuntamente às pazes entre portugueses e os mesmos nheengaíbas através dos sete caciques ( Anajás, Aruãs, Cambocas, Guaianás, Mamaianás, Mapuás e Pixi-Pixi).

Mas, os historiadores da Amazônia não viram ainda, exatamente, que a missa relatada pela inventiva do payaçu Vieira, na improvisada igreja do Santo Cristo, ocorrida há mais de 350 anos na atual reserva extrativista florestal de Mapuá; ato solene – inventado ou real –, que esconde algo mais que a simples suspensão das hostilidades dos índios das ilhas contra colonizadores do Grão-Pará. Foi, na verdade, confirmado pelos fatos uma trégua extraordinária entre as duas poderosas etnias indígenas do delta-estuário. Sem estas pazes do rio dos Mapuá não poderiam os jesuítas estabelecer as aldeias de Aricará (Melgaço) e Arucaru (Portel) e começar a catequese dos temidos marajoaras, levados para a margem direita do rio onde eles estavam ou desejavam estar desde o começo do conflito com os invasores tupinambás descidos do Tocantins. Sem esta providência preliminar, com certeza, não se poderia conservar o Pará nem explorar o Amazonas e seus tributários. A expedição de Pedro Teixeira não seria diferente, para efeito prático do uti possidetis do Tratado de Madri (1750) que revogou Tordesilhas; da frustrada tentativa castelhana através do infeliz capitão Francisco de Orellana, de colonizar Nueva Andaluzia (Amapá e Baixo Amazonas).

Mas, a historiografia colonial, desconhecendo o empolgante mito tupinambá e sua cultura guerreira; quer fazer acreditar que o milagre de Santo Antônio permitiu aos frades do convento do Una levar na conversa um milheiro de índios encapetados pelo espírito Jurupari contra protestantes holandeses e britânicos fortificados no Xingu, Gurupá e Amapá com seus camaradas nheengaíbas (Aruaques insulanos). Assim, de fato, rompeu-se a “linha” de Tordesilhas que dava as ilhas do Marajó, Amapá e o Amazonas inteiro a Espanha. Mas, a antropologia diz que a religião dos tupinambás é a vingança e que a guerra era para essa gente leit motif da conquista do paraíso selvagem: aquela cobiçada terra mágica onde acreditavam não haver fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte...

Então, os caraíbas provavelmente tiveram que se unir ao odiado português com suas armas de fogo e caravelões, para vencer a resistência do inimigo hereditário falante da “língua ruim” (nheengaíba, na verdade diversas línguas de tronco aruaque)//

Na Amazônia, quando a história claudica a geografia explica. Para a pesquisa histórica não podem as precárias fontes dos primeiros séculos de colonização prevalecer “ad eternum” sobre o desenvolvimento dos recursos modernos que já se dispõe. Sobretudo, o avanço da democracia e dos direitos humanos que exige inclusão social das populações tradicionais marginalizadas pelo colonialismo deve começar pela recuperação da memória e do papel histórico dos antigos senhores das regiões amazônica. Sabemos que assim como as mulheres em geral não dispunham de direitos de cidadania plena; os índios e os negros foram confinados no limbo da História pela a Igreja e o Estado colonial no antigo pacto entre o trono e o altar.


"Como se deve escrever a história do Brasil"


A Cabanagem (1835-1840) foi a guerra civil amazônica ocorrida na primeira metade do século XIX, periferia da revolução industrial, levada a efeito pelas “classes infames” da população. Depois que a calma voltou a Amazônia, o naturalista bávaro Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) chegou a Belém do Pará e subiu o rio Amazonas coletando espécimes botânicos durante dez meses até Santarém, donde voltou para a Europa depois de três anos pesquisando a flora brasileira subsidiado pelo rei da Baviera, Luis I e o imperador dom Pedro II.
Martius inverteu o mito do bom selvagem, e le acreditava que os índios eram remanescentes degenerados de povos "superiores", que haviam construído cidades, monumentos e códigos "evoluídos". Suas críticas à crença no bom selvagem foram diretas, dizendo ele:
“Ainda não há muito tempo era opinião geralmente adotada que os indígenas da América foram homens diretamente emanados da mão do Criador. (…) Enfeitado com as cores de uma filantropia e filosofia enganadora, consideravam este estado como primitivo do homem: procuravam explicá-lo, e dele derivavam os mais singulares princípios para o Direito Público, a Religião e a História. Investigações mais aprofundadas, porém, provaram ao homem desprevenido que aqui não se trata do estado primitivo do homem, e que pelo contrário o triste e penível (sic) quadro que nos oferece o atual indígena brasileiro, não é senão o residuum de uma muito antiga, posto que perdida história.”
As ideias e preconceitos de von Martius são fruto do século XIX, época da eugenia do mundo civilizado. Desde o período colonial acham-se “histórias do Brasil” que são relatos de funcionários, missionários e viajantes com registros de fatos e observações sobre a vida e costumes dos habitantes do Brasil, entre os séculos XVI e XVIII. A preocupação com uma história nacional começa na Regência do II Império, a partir da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, projeto de uma história do Brasil em um momento que a classe dirigente buscava consolidar o estado imperial.
O IHGB organizou premiação para o melhor modo de escrever a História do Brasil. O ganhador do concurso foi von Martius, em contato com a disciplina histórica na Europa, particularmente na Alemanha; propondo uma história ao mesmo tempo filosófica e pragmática centrada na formação do povo, incluindo nesta a "mescla das raças" brasileiras. A monografia de von Martius "Como se deve escrever a história do Brasil" expressou preocupação com a ideia de um passado nacional, comum a todos brasileiros, tendo início com o surgimento político do Brasil independente. Quer dizer, o “passado nacional” nestes termos não chegaria nem mesmo ao descobrimento de 1500.

De volta para o futuro da pátria amada

Hoje se sabe que é o presente que explica o passado, não o contrário. Os mortos não governam os vivos como os positivistas diziam, mas os vivos sepultam ou ressuscitam mortos para inventar o futuro: o sebastianismo ensina... Há 10 mil anos migrações asiáticas chegaram a Amazônia povoando o território com diversos grupos paleolíticos. Os quais, pouco a pouco, foram adaptando-se ao ambiente neotropical e diferenciando-se de acordo com o habitat. No processo amazônico de antropização surgiu na ilha do Marajó, cerca do ano 400 DC, a primeira cultura complexa (sociedade de classes) da Amazônia: a Cultura Marajoara. Por que este fato histórico – passagem do estado natural humano para cultura complexa – aconteceu primeiramente na foz e não no médio ou alto rio Amazonas? O bioma fluviomarinho explica aqui e agora (com concurso da ciência) o que aconteceu no passado e o que pode acontecer no amanhã.

A lei nº 5.999, de 10/09/1996, aprovada por deputados estaduais do denominado Palácio Cabanagem e sancionada festivamente pelo governador do Estado do Pará considera o dia 15 de agosto a Data-Magna de Adesão da Província do Grão-Pará à Independência do Brasil declarando este abençoado dia o maior feriado estadual: bom para trabalhador paraense (descendente de cabanos e antigos cativos da Casa das Canoas arrancados das aldeias de altos rios para faxina ordinária da Cidade e conquista dos sertões amazônicos) ficar no lar doce lar a folgar ou ir ao bar bebericar, bater bola em campinho de futebol, ver show de calouro na TV etecetera e tal. Afinal de contas, como diria o poeta Ascenso Ferreira, pernas para o ar! Ninguém é de ferro... Nem besta de carga a ponto de perder feriado e curtir o sacrossanto direito à preguiça em vez de se matar a troco de um salário de fome e fazer fortuna à folgada família do patrão. Noves fora a luta de classes, renegada em nome da boa harmonia entre capital e trabalho; às vezes atrapalhada pela maldita greve em rude ambição de arranjar mais uns trocados no fim de cada mês.

O mundo não havia resolvido a crucial questão do colonialismo até hoje mal resolvida ou porque não a resolveu a tempo, estourou o desastre de duas grandes guerras mundiais uma no rabo da outra deixando no rastro o Holocausto e a hecatombe atômica sem muita folga para respirar e dar começo ao grande surto de paranoia da Guerra Fria. As multidões embaladas por cantos de sereia da felicidade mediante pagamento a prazo e cartão de crédito a perder de vista até a morte do freguês abortam a realidade a troco de ópio e farsa da história. Somente a II Guerra Mundial matou 60 milhões de pessoas e pouca gente se importa com o absurdo civilizado inigualável por quaisquer povos bárbaros ou espécie de animal selvagem. Montanhas de livros, florestas transformadas em páginas de papel, rios de tinta para contar a maior história da insanidade humana de todos os tempos.

Quais foram as causas do conflito mundial? As de sempre inseridas praticamente em todas regiões e províncias do sistema moderno: fome, desemprego, exclusão social; o império do mercado acima de todas coisas... Ironicamente, o Bom Selvagem como Michel de Montaigne e Jean Jacques Rousseau contaram, por acaso foi a Europa ensinar a civilizados atear fogo ao Ancien Régime e iniciar a revolução de 1789. Eram índios tupinambás levados da Guanabara para França, os formadores do mito.
Diferentemente dos filósofos franceses, que fizeram os grandes homens de letras e historiadores brasileiros diante da monumental saga dos tupinambás? Claro, temos notáveis exceções com José de Alencar e Gonçalves Dias na literatura; na antropologia Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro, na história Ronaldo Vainfas e outros; mas regra geral cuidaram particularmente para o Bom Selvagem e seus descendentes não se apoderar jamais do “fogo sagrado” das elites: o domínio da língua nacional pela palavra escrita e, consequentemente, o empoderamento da História.

O colonizador impôs sua própria língua aos povos indígenas colonizados e escravos arrancados de diversas nações africanas. Apagou a memória dos derrotados e a tradição oral para inventou uma história “nacional” de uso vulgar da sociedade a custo de enorme alienação, inclusive falsificação da própria história dos colonos degredados e deportados como indesejáveis na Europa. De modo que os pobres de Portugal por ambição da riqueza do Brasil passassem logo a representar o estamento civilizado na colônia. Cada camponês semiletrado na aldeia de origem atravessando o Atlântico ao desembarcar já posava de bacharel, funcionário de alfândega, missionário, capelão, capitão de milícia, senhor de engenho e dono de escravos. Não foi à toa que, em Portugal, chamar a alguém de brasileiro resultava ofensivo.
O clima jogou papel importante nas duas colônias que Portugal houve na América, o Estado do Brasil na faixa subtropical foi mais ameno a algarvios, madeirenses e açorianos. No Estado do Maranhão e Grão-Pará, sem índio não ia o colono a lugar nenhum: esta a grande diferença do clima equatorial na colonização europeia. O paradoxo, roubar a alma do filho do índio para fazer deste exilado do mato (caa boc, caboco) servo da gleba com que contemplados das sesmarias poderiam ocupar o “espaço vazio” e expulsar os pais de seus servos para o limbo da História. Foi o que sucedeu.

Mas, apesar da “caboclização” à força de decreto, palmatória e casamento compulsório de índias e portugueses deportados; cresce a reconstrução de parentesco entre populações cabocas e indígenas remanescentes dos antigos amazônidas nativos, estimados em até 6 milhões de habitantes à época da conquista do “rio das amazonas”, no século XVII. A cegueira dos donos do Poder deixa a historiografia de calças curtas; é mal sem cura: ameaças de infernos ou promessas de vida eterna no paraíso não puderam evitar que os senhores moderassem seus apetites e maus costumes.
Assim, com a farsa da história o velho mundo governa o novo... O desmedido sacrifício do século XX, malmente remediado com o Plano Marshall na reconstrução europeia; sem cuidar do resto do mundo, desperdiçou ocasião histórica para fazer uma comunidade mundial melhor. A lembrança de 6 milhões de judeus, 4 milhões de eslavos e 5 milhões de russos assassinados por intolerância, a mortandade de japoneses pelas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki são crimes de lesa humanidade que se não poderá esquecer nunca. Mas, e do genocídio ameríndio, quem lembra ainda? Sobre o crime de destruição de civilizações negro-africanas deve-se silenciar? Cedo ou tarde há de chegar o dia em que todo mundo irá clamar pela adoção de um novo plano Marshall – aliás, Plano Mandela – para recuperação dos lesados da Terra: nesse momento será preciso que o Palácio Cabanagem aprove lei nova para corrigir o erro, passanndo a Data-Magna a se referir ao dia 28 de Maio em memória dos patriotas paraenses da heroica vila de Muaná.

A controvérsia, provavelmente, levará novos eleitos ao Palácio Cabanagem a rever a lei à luz de novos estudos históricos, inclusive sobre os 400 anos de fundação de Belém e criação do estado do Maranhão e Grão-Pará (Amazônia colonial portuguesa), no século XVII. Para o pensamento conservador a identidade da pátria depende das grandes datas e personalidades fundadoras da nacionalidade; porém o progresso da ciência histórica, essencialmente dialética e evolutiva no mundo contemporâneo; reclama sobretudo o fato histórico e sua interpretação historiográfica ao longo do tempo e das gerações.

Deste modo, se historiadores positivistas no passado podiam achar com razão que os mortos governam os vivos; e mais longe as mulheres não tinham direito a votar; o direito canônico permitia escravidão de indígenas e negros baseado em dogmas da antiguidade e pretexto de civilizar os bárbaros; os direitos humanos modernos a cabo de lutas memoráveis, nos diz o contrário. São as presentes gerações que explicam o passado e que constroem o futuro, tanto para o bem como o mal.

Não se poderia esperar de fontes coloniais uma opinião favorável aos povos conquistados e colonizados. Logo, a historiografia colonial para os estudos históricos contemporâneos não podem ser mera repetição de textos sagrados; pois isto seria tudo menos objeto da História enquanto ciência. As fontes históricas se expandem continuamente com novas pesquisas, descobertas e interpretações arqueológicas, etnológicas, antropológicas, geográficas e documentais que não só permitem, mas até mesmo obrigam a incluir personagens históricas antes condenadas como criminosos e hoje heróis, tais como a figura de Tiradentes, o mártir da Inconfidência Mineira.

Na história da Amazônia há heróis como Ajuricaba dos Manaus, cuja memória foi defendida da infâmia colonialista por ninguém menos que Joaquim Nabuco ao tratar da questão do Pirara, na fronteira do Brasil com a colônia amazônica da Inglaterra (hoje a República Cooperativista da Guiana). No Pará uma garimpagem minuciosa nas fontes do período colonial poderá achar episódios interessantes, como por exemplo, as cartas do padre Antônio Vieira, em especial referente à pacificação dos Nheengaíbas; onde em meios a mil peripécias inverossímeis escapa o papel inusitado do cacique Piié dos Mapuás como interlocutor avisado e liderança que desdiz a fama de canibais indomáveis que caçadores de escravos e o inimigo hereditário antropófago tupinambá inventavam sobre os habitantes da cobiçada e invencível ilha do Marajó.

No caso da adesão do Pará à Independência, a tal “data magna” não se sustenta diante de uma simples leitura de causas e consequências abordadas na principal fonte do período da guerra civil amazônica que ficou conhecida como a Cabanagem (1835-1840), Domingos Antônio Raiol, Barão de Guajará, em “Motins Políticos”. Raiol situa corretamente na panfletagem de Felipe Patroni, proprietário de escravos e partidário da revolução liberal do Porto; através do jornal “O Paraense”, primeiro órgão de imprensa na Amazônia; a origem da agitação popular contra o colonialismo.

A Miserável Revolução das Classes Infames

Décio Freitas em seu último livro tratou da Cabanagem, reprimida sangrentamente com um total de 30 mil pessoas mortas ou cerca de 25% da população do Pará na época. O nome de “cabanos” não foi assumidos pelos combatentes, mas obra do acadêmico Basílio de Magalhães, do IHGB, que na falta de um qualificativo comparou a revolução paraense com a Cabanada alagoana; deste nome devido a maior parte dos revoltosos viver em pobres cabanas, levando vida miserável que foi fator da revolta.
O norte do Brasil só passou a ser brasileiro um ano após o Grito do Ipiranga. Durante o domínio espanhol (1580-1640), em 1608, desenhou-se uma divisão norte e sul do território brasileiro, mas só em 1615 o Maranhão foi tomado aos franceses que fizeram alia a França Equinocial. Em 1621, o norte e o sul receberam nome de Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará, este com capital em São Luís, que em 1751 passou a Estado do Grão-Pará e Maranhão, com capital em Belém. A mesma capital permaneceu na última mudança, em 1772, quando se desmembraram as duas partes, com as províncias do Maranhão e Pará. Era a Amazônia portuguesa uma colônia separada do Brasil, que fazia intercâmbio direto com a metrópole em Lisboa e o estrangeiro, sem intermediação do Rio de Janeiro. Belém era uma capital com expressiva presença estrangeira, enfim uma colônia equatorial separada do estado colonial do Brasil.
O peculiar colonialismo português na Amazônia, agravado pela geografia equatorial; criou uma das piores burguesias ultramarinas, incapaz do menor esforço sem depender de escravos até para ínfimos trabalhos domésticos e exploração de negros e negras de aluguel. A pobreza dos senhores era ostensiva de tal maneira que poucos podiam comprar escravos negros na praça do Maranhão, muito caros para a posse dos colonos do Pará, o resultado era uma opressão terrível e tirania insuportável sobre a massagada de tapuios (índios mansos; diferente de tapuia, índio brabo) e um conflito permanente entre o clero, governo e o estamento de colonos. O povo, portanto, era a massagada indígena desamparada acrescida de poucos negros escravos e mulatos libertos. Os “habitantes” da Cidade eram sinônimo de “branco” e “português”, mais por critério de renda que a cor da pele ou “raça” dos indivíduos. Muitos descendentes da patuleia lusa degredada faziam parte do povo, eram conhecidos por brancaranas (pseudo brancos, em língua geral amazônica), simpatizantes do regime republicano através de contatos com a vizinha Caiena (ocupada por tropas paraenses, de 1809 a 1817), partidários da adesão à independência do Brasil, e por fim aliados aos cabanos.
Com a nova da Independência em 1822, os paraenses como os povos de outras regiões e províncias periféricas agitaram-se na perspectiva de uma mudança de regime. Enquanto a classe comercial dependente das exportações temia o rompimento com o reino de Portugal, ao mesmo tempo que desejava o fim do domínio colonial, mas também descentralizar o país repartindo o poder com as províncias. A Constituinte convocada por Pedro I foi dissolvida sem solução de continuidade do velho regime e a própria independência caiu numa armadilha conservadora.
Em várias províncias surgiram oposições contra o governo imperial exigindo autonomia para as regiões. Neste contexto histórico ocorreu a renúncia de dom Pedro I e guerras civis como a Farroupilha, no Rio Grande do Sul, entre 1835 e 1845, e a Cabanagem, no Pará, de 1835 a 1840. Esta é motivo do último livro de Décio Freitas, “A Miserável Revolução das Classes Infames”. O autor postula a existência de uma testemunha dos acontecimentos, um bretão chamado Jean-Jacques Berthier, cujo pai teria sido partidário de François Noël Babeuf, dito Gracchus Babeuf, revolucionário morto na guilhotina durante o Terror, na Revolução Francesa, como o pai de Jean-Jacques Berthier.

Interessante observar os contatos históricos do Pará revolucionário com o exterior, dos republicanos dos Estados Unidos, revolução dos escravos e independência do Haiti, movimento liberal do Porto, a Carbonária italiana e jacobinos franceses. Décio Freitas conheceu o personagem por meio de cartas escritas desde Belém do Pará pelo próprio Berthier a um seu irmão que vivia na França. O historiador encontrou relatos privilegiados dos acontecimentos, Berthier é um jovem que participou da queda da Bastilha. Por isto ele, em 1797, se encontra deportado em Caiena e anos depois da ocupação anglo-portuguesa da Guiana francesa, cerca de 1820, passa a Belém do Pará aos 38 anos de idade. Sendo um veterano Berthier distinguiu os fatos, tensões encobertas, intenções mal disfarçadas, significados mais obscuros da Cabanagem. Décio Freitas pretendeu superar os “claros, omissões ou insuficiências” das informações nas cartas de Berthier, apesar do livro terminar sendo “uma narrativa à base daquilo que ele [Berthier] testemunhou”, “uma construção feita pelo historiador” da observação da luta popular vista com frieza e pessimismo pela testemunha estrangeira.
Um dos focos de interesse da obra é o modo de vida e a ação dos tapuios, populações indígenas destribalizadas (cabocos), ainda relativamente isolados das mais etnias do entorno da Cidade. Os tapuios formavam grupo ao mesmo tempo social e cultural homogêneo. Formaram a maior parte da população paraense em armas, apesar dos combatentes negros ansiosos por se ver livres da escravidão terem se distinguido de modo particular, mas de todo modo foram minoritários. Não havia capital suficiente no Pará para comprar grande número de escravos africanos. Outro foco do relato de Berthier se ocupa da trama política da Cabanagem, segundo lhe pareceu tratou-se de um confronto entre dois grupos socialmente distantes e diametralmente opostos: as “classes infames” formadas de tapuios, índios ainda aldeados, negros libertos, mestiços de variados tipos, gente pobre em geral, junto a setores de classe média como alguns comerciantes, jornalistas e padres. E as denominadas “principais famílias”, de grandes comerciantes, exportadores, latifundiários, ocupantes de altos postos mais da administração e da Justiça, claramente colonialistas pró-Portugal.
O historiador Décio Freitas abandona a aparente frieza das cartas de Berthier para tomar partido das “classes infames”. Sem, no entanto, lhes dotar de atributo messiânico ou revolucionário. O pessimismo de Berthier parece contaminar o derradeiro livro de Décio Freitas e o relato termina desesperador, as “principais famílias” vítimas do próprio egocentrismo restam indiferentes ao futuro da sociedade. Como se o destino de todo colono seja idealizar a mãe-pátria distante e devastar a Terra sempre pronto a evadir-se e emigrar. Enquanto as “classes infames” parecem condenadas a não saber autogovernarem-se, a estabelecer autonomia local, em sua deriva social entregam-se a sem número de desregramento com mais apego à lubricidade e ao sexo do que ao trabalho e à organização política.
Berthier talvez através de Décio Freitas tenha superestimado numa situação de guerra civil cenas de sexo e violência próprias de qualquer conflito armado, o civilizado projeta no bárbaro seus instintos sufocados no velho mundo. O diabo são os outros (Sartre), as “principais famílias” querem ver nas “classes infames” a natureza luxuriante e incontrolável. Berthier confunde datas e episódios dos inícios da Cabanagem, mas percebe perfeitamente que a Tragédia do brigue Palhaço (em outubro de 1823, em não em 1831) como desfecho do engodo anglo-português de 15 de agosto foi a causa primária do transe de 1835, 12 anos depois.

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