domingo, 1 de maio de 2011

KWAT'MARE: OS FILHOS DA COBRA GRANDE NO REINO DO EL-DORADO

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tributo a Ivonilo Dias Rocha,
exemplo de homem público a serviço
do Exército brasileiro, do Itamaraty
e da integração dos países amazônicos.
Cujos restos mortais jazem junto a um
marco de limites na fronteira entre
o Brasil e a Colômbia.


Por acaso, no Dia do Trabalho, começo eu este exercício destinado a todos e a ninguém: leitura das 1064 páginas da obra "Seja Feita A Vossa Vontade - A Conquista da Amazônia: Nelson Rockefeller e o Evangelismo na idade do Petróleo", de Gerard Colby e Charlotte Dennett, tradução de Jamari França, Editora Record: Rio de Janeiro / São Paulo, 1998; em cotejo à memória de minha primeira viagem à fronteira Brasil-Venezuela (Roraima, lendário país do El-Dorado, na cordilheira Parima, berço de Macunayma).

Preguiça e Trabalho rivalizam na fronteira dialética entre Bárbaros e Civilizados. A verdade passa mal na floresta de letras onde linhas tortas serpenteiam no divisor de águas deste blogue estúrdio. Todavia, fica claro que o blogueiro é advogado do Diabo e discípulo da mestiçagem tropical sob manto sagrado de santa Maria morena de Guadalupe. Tomo partido na questão do direito à preguiça que assiste aos fracos e oprimidos colonizados da teoria econômica das ilimitadas necessidades da santa madre Civilização ocidental cristã.

A crista da ironia é lembrar o herói sem nenhum caráter, reinvenção de Mario de Andrade sobre mito taurepã "cheio de malícia e preguiça": vivo contraste moral calvinista da acumulação de capital. Ao teclar a conversa dos lesados da Terra em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém, penso nos motivos ocultos da tragédia de Chicago (EUA) 1886.

Mas, a "descoberta" da América (aliás, Americ nome maya da Nicarágua, no sentido de "país do vento") pelo cristão-novo ou cripto-judeu Cristóvão Colombo custou imediatamente, à vista, 20 mil escravos Lucayos (Aruak) capturados pelos espanhóis nas Bahamas para buscar ouro no Haiti. O pior da estréia civilizacional foi aquilo que Bartolomeu de Las Casas denuncia em "A destruição das Índias": que, em vez dos monarcas cristãos aportar o Cordeiro de Deus para pacificar bestas feras que diziam haver no Novo Mundo, mandaram lobos famintos que matam e decepam os cordeiros...

A legenda genocida da Conquista começou logo na primeira viagem de Colombo e, como se vê, ainda não terminou na conquista da "última fronteira da Terra", a Amazônia... Há mais de meio milênio, ao chegarem as naus Pinta, Nina e Santa Maria à ilha Guaanani (logo batizada de ilha do Salvador, dizem historiadores por malícia do Almirante querendo dar a entender o Messias, mas na verdade pensando em seu irmão Salvador Colombo como futuro donatário...) uma das três caravelas deu de encontro aos arrecifes submersos e foi a pique. Daí vem o topônimo que ficou da primeira ilha conquistada, chamada de 'Baja-Mar'(Bahamas). Nem Guaanani dos índios Lucayos, nem Salvador dos castelhanos. Que fizeram os "índios" (que, na verdade, não estavam na Índia)? Foram os salvadores dos náufragos e cuidaram de salvar os bens e o navio de seus algozes que acabavam de chegar.

Em pagamento, 20 mil Lucayos foram aprisionados e levados como escravos para cavar ouro no Haiti, que passou a se chamar Hespaniola (atuais República Dominicana e a infeliz Haiti). A origem de Cristóvão Colombo é considerada obscura por alguns estudiosos. Fernando Colombo, seu filho, na "Historia del almirante Don Cristóbal Colón" ocultou a pátria de origem de Colombo, afirmando que o seu pai não desejava que fossem conhecidas tais fatos.

A prudência do "descobridor" não explica muita coisa do Novo Mundo, mas dá pistas interessante para descobrir a cultura intolerante do velho mundo. A fome e a miséria da Diáspora, a violenta romanização, invasão árabe da Europa, guerra de Reconquista. Sob as brunas do mistério foram, pouco a pouco, surgindo hipóteses sobre o lugar de nascimento de Cristóvão Colombo. Destas destacam-se hipóteses da origem portuguesa, catalã ou galega.

A naturalidade portuguesa de Cristóvão Colombo se baseou em seus escritos, na interpretação do anagrama da assinatura de Colombo e nos topónimos dados pelo navegador às terras que descobriu. Menéndez Pidal confirmou o portuguesismo dos textos do descobridor, discordando do galeguismo ou catalanismo. Entretanto, o historiador Antonio Romeu de Armas diz que isto se deve não por ele ser português, mas devido a vários anos que viveu em Portugal. Ademais, existem conjecturas sobre possível origem judaica sefardita, conforme a tese de Salvador de Madariaga. Para este, Colombo seria genovês de nascimento, porém seus antepassados seriam judeus da Catalunha, fugindo do anti-semismo do fim do século XIV. Por fim, Colombo seria um judeu convertido ao cristianismo, razão que explicaria o próprio nome "Cristóforo" (portador de cristo, conforme a lenda de São Cristóvão, originada na Síria), segundo Madariaga, vinha desse caldo de cultura europeu seu afinco em ocultar as suas origens.

Eis aí o fundo de cultura do extremo ocidente transportado às Américas. Cortina de fumaça da teoria do segredo, que escondeu a "Descoberta" permitindo o horror da destruição das Índias Ocidentais pelos conquistadores do velho catolicismo ibérico e a colonização protestante sintetizada no cínico axiona yankee: "índio bom é índio morto".

Sem dúvida, tal fundo de cultura ocidental cristã no Novo Mundo serviu de leit motif aos crimes da indústria do automóvel casada com a ditadura do petróleo. Ou melhor, o império mortal dos petrodólares... Portanto, não devia espantar o fato de que que a roda da fortuna gira sobre montanhas de cadáveres e membros mutilados de escravos e míseros assalariados de milhões e milhões de "negros" da Terra além da melanina.

Eu também sou do lado de Jesus ressuscitado da Cruz, como diz Gilberto Gil; mas eu acho que Ele se esqueceu de avisar que pra sobreviver aqui na terra a gente tem que achar jeito de viver sem trabalhar mais do que o necessário. Marx talvez devesse prestar mais atenção ao seu genro mestiço Paul Lefargues, com o sarcástico "Direito à Preguiça" levado a sério como instrumento de greve geral aos malfeitos da globalização. Não está claro, na reivindicação de redução da jornada de trabalho que ficou na história de 1º de Maio?

Naquele dia teve início a greve geral nos Estados Unidos e no dia 3 de maio houve levantamento operário e enfrentamento com a polícia, levando à morte de manifestantes. No seguinte, novo protesto terminado com uma bomba ao meio dos policiais matando sete agentes. Até parece avant première do massacre de Eldorado de Carajás: repetição da história como farsa... Em represália, a polícia do Capital abriu fogo sobre a multidão de trabalhadores, matou doze pessoas e feriu dezenas de manifestantes da Revolta de Haymarket. Um contínuo da luta de classes que vem pelas margens dos caminhos das Índias até os nossos dias, na idade do petróleo e da mudança climática.

Colby e Dennett vieram investigar de perto a tragédia do Novo Éden, em 1976. Eu, por minha parte, sem nenhuma pretensão maior do que acrescentar ao magro salário "gratificação de campanha" para dar acabamento a uma modesta residência no subúrbio de Belém (onde moro até hoje), no ano de 1977 fui pela primeira vez a Roraima. Lá, durante cinco meses, permaneci no rio Uraricoera, curso superior do Rio Branco, onde participei de acampamento da Comissão Mista Brasileiro-Venezuelana Demarcadora de Limites: uma verdadeira escola de fronteira. O casal de jornalistas investigativos norte-americanos havia realizado sua viagem a Amazônia em busca da verdade a respeito de noticiário da imprensa sobre atrocidades cometidas contra os direitos humanos dos índios, supostamente praticados pela CIA em conluio com ditaduras da região e o célebre Instituto Linguístico de Verão (SIL).

Nas faixas de clima temperado das Américas, a colonização de ocupação exterminou pele-vermelhas e manadas de bisões sem nenhum remorso. Pelo contrário, converteram o genocídio em mercadoria com heróis de cinema bang-bang e revistas de quadrinhos. Porém, no trópico úmido, o colonizador branco deu com os burros n'água... Aqui, sem índios e negros escravos o tesouro do El-Dorado não valeria uma pataca. Como fazer? Matar o índio ainda, mas lhe cativar a alma para ser escravo voluntário: a genial invenção do caboco (homem extraido do mato para a aldeia missionária) e do crioulo (o mestiço indolente e astuto), capaz de acender uma vela a Deus e outra o Diabo até o fim dos tempos.

Porém, o mundo é mais complexo do que imaginam teólogos fundamentalistas e profetas do esquerdismo humanista. Os povos são mais parecidos uns com os outros do que a biodiversidade e diversidade cultural deixa tansparecer. As fronteiras feitas para separar colônias e províncias, também aproximam. Os continentes são mundos diferentes, mas a Terra é única.

Intelectuais como Giorgio Agamben, Hannah Arendt e Slavoj Zizek utilizaram o termo "Homo sacer" para mostra a condição de povos estigmatizados. Slavoj Zizek toma com referência o povo do Afeganistão, o termo se refere a povos que adquirem um modo de existência sagrada, paradoxalmente, negativa todavia imprescidível. Ele usa a imagem do avião distribuindo comida e roupa para população atacada por bombardeio. Eu penso que povos "amazônicos" tornados "índios" por decisão de seus "protetores" se acham incluídos na categoria de "intocáveis" das Índias Ocidentais...

"Homo sacer" é uma figura enigmática da lei romana: pessoa que é excluída de todos os direitos, enquanto a sua vida é considerada "santa" em um sentido negativo. Ainda, pode ser morto por qualquer um, porém não pode ser morto em rituais religiosos. A lenda de Caim, na mitologia judaico-cristã, define a maldição dessa gente. Na mitologia amazônica, os índios são filhos da Cobra grande (uma entidade cósmica que toma forma de Anaconda e vive nos rios): por coincidência, a serpente do Jardim do Éden é o simbolo do Mal na cultura mesopotâmica. O processo de mestiçagem de corpos e espíritos, através das diversas culturas de fronteira, está longe de chegar a termo.


Mas, para começo de conversa, eu era apenas um rapaz nativo da ilha do Marajó, descendente de índios e emigantes da região da Galícia (Espanha) e Açores (Portugal). Por necessidade e acaso, aprendi um pouco do trabalho do campo e da feira do Ver O Peso (Belém), com alguma sorte arranjei emprego de comerciário, office boy em escritório de advogado, passei por curta experiência de repórter na imprensa do Pará e colaborei na mídia nacional; um dia me lancei em louca aventura política na terra natal, Ponta de Pedras, terminando em derrota eleitoral e perda do emprego no "Jornal do Dia". Com uma mão à frente e outra atrás, fui ser secretário-contador da prefeitura municipal de Faro.

Começa aí meu aprendizado da "grande oval insular das Guianas" (geógrafo Raja Gabaglia) e da área cultural guianense, inclusive ilha de Trinidad e arquipélago do Marajó (sociólogo Ciro Flamarion Cardoso): advirto que sou leitor ávido e dono de uma curiosidade infantil insaciável. Foi assim que fiz carreira no serviço público de meu país, e assim acabei descobrindo o país do Eldorado, terra dos Ianomami. Agora uma pausa. Até logo mais

domingo, 14 de novembro de 2010

A MÃE DE JURUPARI E A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA

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a primeira notícia que os civilizados tiveram sobre Jurupari saiu da França Equinocial (1612-1615) [cf. Abbeville, Claude d´- "História da missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas: em que se trata das singularidades admiráveis e dos costumes estranhos dos índios habitantes do país", São Paulo : Livraria Martins, 1945.].

em tão pouco tempo, não seria possível aos padres captar e entender a complexidade do pensamento tupinambá. Muito do preconceito católico que recaiu sobre o espírito tutelar dos pajés do Maranhão os padres já encontraram de parte dos aventureiros protestantes da colônia de La Ravardière. Muito notadamente, o piloto e intérprete Charles des Vaux, braço direito de Daniel de la Touche, entendido na língua e costumes dos Tupinambás. Daí que para o Jurupari dos índios virar Diabo dos cristão não demorou nada.

a França estava em guerra com a Espanha e Portugal por causa do célebre "testamento de Adão" (tratado de Tordesilhas de 1494) e Portugal subjugado pelos Reis Católicos, desde 1580 até 1646, durante a União Ibérica. O Diabo fora o grande álibi dos católicos na matança dos protestantes franceses na fatídica Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1570)... A guerra religiosa francesa, portanto, vazou ao Maranhão e contagiou toda Amazônia desde o berço.

tomado o Maranhão aos coloniais protestantes de La Ravardière pelos portugueses de Jerônimo de Albuquerque; e expulsos do Grão-Pará holandeses e britânicos (1623-1647) o Diabo cristão em figura de Jurupari continuou fazendo das suas, segundo o juízo de Claude d'Abbeville. Tanto que as ilhas Jurupari, como monumento natural na foz do rio Amazonas, conserva na memória dos cabocos ribeirinhos a herança dos índios antepassados e o folclore da ilha do Marajó ainda guarda o dia do Berto (24 de agosto) como lembrança remota da trágica Noite de São Bartolomeu em Paris.

o curioso da inventiva dos tapuios (índios catequizados), deixada aos descendentes marajoaras através do folclore, é que esse Berto (representação do Diabo) capaz de causar acidentes e danos a que ousar trabalhar nesse dia; também é capaz de prestar serviço à comunidade: pois, vagando pela várzea o Capeta vai urinando nas touças de açaizeiro com que o fruto "preteja" (amadurece) de vez.

todavia, precisou três séculos desde a maldição de Jurupari na França Equinocial para o alemão naturalizado brasileiro Curt Nimuendaju decifrar o enígma das migrações dos Tupinambás e chave da religião dos pajés-açus ou caraíbas. Hoje, se a filosofia amazônica fizer cruzamento da História, com a Antropologia e a Psicologia logo se há de perceber que, movidos pelo espírito tutelar em busca da mítica Terra sem mal (Yby Marãey) foram os Tupinambás os verdadeiros conquistadores da terra dos Tapuias (Tapuya tetama), Grão-Pará, Amazônia.

a "linha" do tratado de Tordesilhas, entretanto, pelo meridiano de 370 léguas a oeste de Cabo Verde tangenciava, no terreno, a "Costa-Fronteira do Pará": litoral meridional da ilha do Marajó limitada da Terra-Firme (continente) pela baía de mesmo nome. Na realidade, a fronteira tordesilhana na Amazônia - de direito e de fato - teve na brava resistência marajoara seu maior baluarte.

tal resistência cedeu passagem pela primeira vez em 1538, por suposto, frente à poderosa migração de 14 mil tupinambás chegados até o Alto Amazonas (cf. relato de Diogo Nunes, em "O Novo Éden", de Nelson Papavero et al.). Antes do "descobrimento" de Francisco de Orellana e Gaspar de Carvajal (1542). A segunda vez, frente à entrada de Pedro Teixeira de Belém (Pará) a Quito (Equador), 1637/39), levado por 1200 arcos e remos tupinambás. Enfim, a pacificação das ilhas do Marajó pelos jesuítas sob a missão do payaçu Antônio Vieira, com o desdenhado encontro do rio Mapuá [Breves], de 20-27 de agosto de 1659.

não há dúvida de que os poucos portugueses no Maranhão Grão-Pará, sob contínua desconfiança e má-vontade dos castelhanos na União Ibérica, apesar de valentes não poderiam sozinhos conquistar a praça de São Luís do Maranhão nem se estabelecer no Pará, muito menos romper a "linha" de Tordesilhas para atravessar o muito povoado arquipélago do Marajó rio Amazonas acima expulsando dali concorrentes holandeses, ingleses, irlandeses e escosseses, desde 1599, com feitorias de escambo de miçangas (facas, machados, contas de vidro) a troco de gados do rio (peixe-boi, tartarugas e pirarucu) e drogas do sertão (paus de tinta, urucu, cacau, quinina, etc.) com índios "nheengaíbas" (aruaques) inimigos hereditários dos tupinambás.

o que, de fato, aconteceu que a historiografia colonial não entendeu ou se entendeu omitiu? Primeiro, que a antropologia americana estava por fazer até inícios do século XX: o índio não tinha história senão como coajuvante do branco colonizador... Quando aparecia nos relatos de missionários, sertanistas e viajantes era com antipatia e preconceito. Só agora a partir do movimento dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente os povos e populações tradicionais viraram gente propriamente dita.

mas, que diabo afinal é Jurupari e como ele veio ao mundo amazônico? Se no Maranhão Jurupari era, como frei Abbeville escreveu, o Diabo que veio da Europa arruinar a obra de Cristo no Novo Mundo; depois de diabolizado pelos padres e levado rio acima no ventre da língua geral amazônica, o Nheengatu; Jurupari chegou aos últimos recantos e foi diversamente reinventado pela massagada catecúmena de tapuios (índios mansos).

a lenda do Jurupari, contudo, entabula uma dialética regional e está no cerne da amazônidade. Aqui a patuléia faz a sua síntese civilizacional que Freud explica: o nascimento do espírito a partir da complexidade da matéria orgânica. Da animalidade à humanidade, a cultura desponta como modo de existência. Anda mais elementar, o mundo vegetal sendo "mãe" de bichos e gentes: uns e outros parentes entre sim...

um belo dia a índia virgem Ceucy distraiu-se na floresta a comer cucura-do-mato (fruta de embaúba, muito estimada pelos índios, que os missionários compararam à uva para fabricar o vinho). O doce sumu da fruta selvagem desceu dos lábios da jovem índia escorrendo pelos seios e, por acaso, penetrou à vagina. Deu-se um encanto e Ceucy engravidou misteiosamente. Na aldeia ninguém acreditou naquela surrealista estória, sem explicar o verdadeiro pai da criança a nascer ela foi renegada pelos seus e saiu a vagar pelo mundo.

ao cair do sol no horizonte Ceucy adormeceu e nesse estado pariu a Jurupari. Ele já nasceu adulto, era filho do Sol mas havia figura sombria: vinha para corrigir o mundo e libertar os homens escravizados pelas mulheres... Há quem veja no mito vestígio do pensamento arcaico de um tempo de matriarcado pré-amazônico. Traços cristãos estão presentes na imensa fabulação onde se confundem mitos indo-europeus e indígenas de diversas extrações da babel linguística sufocada pela hegemonia do Nheengatu.

as célebres amazonas da Capadócia se misturam às Virgens do Sol dos íncas e icamiabas (mulheres sem marido) dos tapuios da floresta amazônica. Há um lendamento geral sobre o Jurupari tupi levado ao coração da Amazônia pela língua-geral. Aí talvez o óbvio "matriarcado" do nomadismo paleolítico com as mulheres e suas crias esfomeadas demanando cada vez mais caça, peixes e frutos conforme aumentava a prole; gerava tensão entre homens e mulheres, a "guerra dos sexos"... A disputa por territórios de caça e coleta aumentava o risco de confrontos mortais com grupos vizinhos.

nesse cenário Jurupari veio ao mundo para renovar o mundo pelo poder dos homens. Desde então houve a instituição da "casa dos homens" sob rigoroso segredo e interdição às mulheres. A primeira transgreção da lei de Jurupari foi cometida por sua própria mãe, Ceucy ["mãe das lágrimas"]. Curiosa do que se passava na Casa dos Homens ela aliciu um velho pajé que lhe revelou o segredo daquela revolução selvagem. Então, Jurupari a transformou na constelação das Plêiades exilando-a para sempre da terra dos homens e o velho pagou a sua falta transformado em Tamanduá, bicho que mata seus inimigos cravando-lhes poderosas unhas, como punhais, pelas costas. Que faria a Psicanálise nesta cultura ancestral?

os frades do Maranhão ficavam espantados com as premonições dos pajés vindo lhes dizer que em tantas luas havia de chegar tantas naus com esta ou aquela novidade da Europa. A teoria do Inconsciente ainda estava longe de aparecer. Pobre padres assombrados pelo Demônio, que mais podiam pensar? Jurupari quando aparece vem com o cair da noite, vestido de pesadelo, desce como uma cobra pelo punho da rede do sonhador: põe a mão pesada sobre a boca do vivente lhe impondo silêncio ainda que queira gritar. O rosto do fantasma é sombra. Então, ele fala ao ouvido do mortal revelando o futuro e dizendo o que tem quer ser feito para atalhar o mal e produzir o bem para a gente do lugar.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cacicados e Caciquismo

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Que nem o ínclito deputado carioca Índio da Costa nada tem a ver com os povos indígenas extintos pela "civilização" no litoral do estado do Rio de Janeiro, também não tem parentesco nenhum o malfadado caciquismo político das províncias do Brasil e a antiga instituição de liderança das primeiras sociedades complexas das Américas.

Vejo como projeção de maus costumes dos colonos sobre povos "primitivos" essa estória de chamar de cacique a reizulus e senhores de casa grande, que mandam e desmandam nas satrápias da política. A América do Sul vem de começar, depois de 200 anos de movimento independendista das antigas colônias americanas; o que se poderia chamar de a etapa final da descolonização.

Os riscos em dar com os burros n'água são consideráveis. Todavia, damos um passo adiante ou recairemos na ociosa oscilação de ciclos de ditadura e demagogia que caracteriza a história das Américas Latinas...

A Constituição de 1988, fazendo eco ao esgotamento da Guerra Fria, foi estuário de uma demanda democrática tanto tempo represada; a bem dizer desde a Abolição da escravatura (1888). O Caciquismo vem perdendo terreno face à moderna democracia representativa, mas ainda assim ele está longe de estar morto. A defenestração de Collor de Mello do Palácio do Planalto teve nos caras-pintadas nas ruas um elemento muito significativo para excitar a paixão política, porém o governo Collor caiu mais por ter cometido a arrogância de juventude ao desafiar velhos caciques, que não pintam o rosto jamais e nem deixam a segurança dos palacetes de residência.

A era Lula pode significar um hiato histórico de fraqueza dos caciques, em mal de adaptação à nova rodada global premida pela crise econômica e a mudança climática. Lula pode ser chamado de tudo, menos de analfabeto político: ele não mordeu a isca do terceiro mandato e saiu por cima. Renunciou a ser cacique para maior ódio dos caciques... Que morrem de inveja de um Cara esperto assim, que manda sem se apegar ao mando da cadeira.

Os mais espertos do "fim da História" embarcam anciosos na nau do ecocapitalismo à todo vapor. Mas, os povos e populações tradicionais pela primeira vez estão diante de uma oportunidade concreta de fazer um novo mundo possível, como reza a ladaínha do FSM. O diabo é que muitos dos "brancos-de-olhos-azuis" que empestaram o mundo de fumaça industrial querem agora, à fina força de marquetingue, cobertos de lã com pés de cabra de fora, tomar conta novamente da situação.

O que há de novo? Do impedimento do presidente da República ao rolo compressor da iniciativa popular impondo goela abaixo a lei do Ficha Limpa aconteceu algo impensável há poucos anos (eu não acreditava que a tal lei fosse colar e sei que colou por causa da internet). Caciques políticos tremem, há choro e ranger de dentes nos fundões das capitanias hereditárias... As chamadas esquerdas (noves fora velhos escaldados da "ditabranda"...)festejam antes do tempo.

Não sei não! Tomara que a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) tome pé, aprendendo, ao mais rápido possível, com os acertos e erros da União Européia. A primeira lição será talvez para decifrar o enigma do Libertador (Simon Bolivar)como proposta de um pan-americanismo crioulo que não seja mera cópia malfeita do absolutismo da velha Europa. É certo que tem o viés socialista de Abreu e Lima no bolivarismo. No Brasil não sabem quem foi o General brasileiro de Bolivar... Claro que não podemos "extirpar" de nós mesmos nosso passado ultramarino indo-europeu e africano, mas é no renascimento ameríndio que se deveria apostar mais, inclusive fazendo atenção às teses de desenvolvimento político-cultural na obra de Antonio Gramsci.

A que tipo de democracia popular as massas latino-americanas poderiam aspirar? Leonel Brizola chegou a sugerir um certo "socialismo moreno", que Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e outros poderiam teorizar... O martiniquense Frantz Fanom deixou uma excelente literatura para pensar o "socialismo moreno", ou melhor, tropical. Mas, na verdade, a Ditadura de 64 fez corte raso na intelectualidade brasileira. As contradições do momento são muito intensas e o centro econômico (EUA-UE-Japão)não dão mostras de estar à altura das mudanças inevitáveis, enquanto as economias emergentes (Brasil, China, Índia, Rússia) ainda ofuscadas pela nebulosa nacionalista, donde estão a sair, carecem de tempo para investir numa nova direção internacional. Haverá (tomara!) uma breve "idade média" no colapso da Roma norte-americana? Mas, já se sabe da queda do império e o povo norte-americano tem cacife suficiente para mudar o script. Ninguém precisa ser anti-americano: a classe capitalista já faz isso... O que falta é o povo americano abrir os olhos e fugir da alienação consumista e do chauvinismo arrasador. Precisa de maior visão de mundo e a conviver com as diferenças. Revogar o dito "índio bom é índio morto" e cuidar de salvar o que ainda lhe resta de pele-vermelha.

Bobagem! Que sabe um caboco velho como esse? Hão de dizer os sábios da modernidade do alto de seus arsenais atômicos ao largo da montanha de cadáveres de civis inocentes e jovens soldados recrutados para guerras ofensivas sem razão de ser. No entanto, um pouco de humildade poderia abrir as portas das academias ao estudo sociológico de formas de governo de populações tradicionais.

Aí, talvez, se achariam notícias sobre cacicados originais, que funcionaram como verdadeiras confederações de aldeias. Nos quais a figura do Cacique pouco diferia do atual papel honorífico da raínha da Inglaterra (reina mas não governa). Uma liderança "orgânica", socialmente construída e aceita por todos. Pelo que dizem textos antigos, Cacicados duradouros eram garantes de paz nas regiões. Ao contrário de "caciques" modernos movidos a golpes baixos e preocupados com vinganças e retaliações de inimigos. Contudo, é certo que os verdadeiros caciques -- excepcionalmente --, em caso de perigo, exerciam função militar na guerra defensiva. Nada estranho aos gregos antigos, ao que parece.

Afinal de contas, o que é a lei da Ficha Limpa além do arcaico estatuto heleno do ostracismo? Nas exaustivas sessões do STF, podendo ser assistidas pela TV Justiça, viu-se como a renascença da Ágora ateniense, para banir "caciques" da política tupiniquim: não faltaram citações sibilinas atribuidas a Sócrates (o da cicuta) e Platão (modelo perfeito do governo das elites). Por pouco deixaram de evocar Aristóteles e justificar o jugo, natural, de senhores sobre escravos como "cláusula pétrea" (eterna) de direito constitucional. Fora do augusto palácio, porém, o espírito de Robespierre misturava-se à multidão de televidentes.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

As formas e as coisas: discurso acerca do tato

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Toda viagem é uma iniciação: o viajante deve ficar “vazio” de preconceitos para perceber o que a alteridade tem a lhe oferecer. O primeiro passo deve ir em direção ao conhecimento das coisas como um cego poderia aprender. Claro, o viajante não é cego. Mas na vida intra-uterina, tal uma câmara escura, ele não via nada. Nisto ele fará como oleiro que aprende do barro a inventar a cerâmica. Não foi o artista que ao fio do tempo se tornou mestre de ofício, mas o aprendiz da própria matéria que se fez artista no trabalho: o caminho é que ensina o caminhante a caminhar...

O carpinteiro ou marceneiro a trabalhar madeira bruta tem mais para aprender dela do que do mestre do ofício. Este um ensina a sua experiência,todavia o aprendiz saberá melhor da matéria que ele trabalha e do calo que faz às mãos. Madeira, barro ou metal age no corpo e mente do operário tal qual a ferramenta sobre a matéria-prima moldável. As mãos calejadas é que amadurecem o espírito nascido de uma vida vivida (que nem o cérebro que cria a mente e a mente que concebe o cérebro). Foi assim que o primitivo Homo habilis, filho da animalidade, se trans-formou no curioso e perigoso Homo sapiens, segundo dizem. Donde se concluiu deste processo vital: se há espírito em tal obra ele é filho do Homem.


Da noite dos tempos, os “tesos” da ilha do Marajó


reza a lenda, a primeira noite do mundo – reza a lenda amazônica – estava guardada pela Cobra grande dentro de um caroço de tucumã (Astrocarim vulgare), palmeira de muitos espinhos no tronco e nas folhas, forma touças inclusive em meio aos campos) em um lugar secreto, nas cabeceiras do rio. A filha da grande serpente das águas ia se casar e a mãe quis dar à filha a noite como dote de casamento, até então só existia um interminável dia, sem repouso e hora para edílio e amor. Já se vê que no paraíso selvagem a serpente, mãe dos homens; não faz má figura como fez no jardim do Éden, amaldiçoada por Javé. Não se sabe se esta estória já existia antes dos Padres chegarem a Amazônia, ou, ao contrário, ela foi inventada depois deles para fomentar a contra-cultura de pagãos e hereges.

Todas as versões concordam, sobre terem sido mandados três servos buscar a noite no fim do mundo. No entanto, há versões que em vez do caroço põem a noite dentro de uma cuia. Em chegando ao lugar, os homens acharam o caroço enfiado num recanto escuro, escutando estranhas vozes e rumores vindos de dentro do caroço: cheios de curiosidade, um deles quebrou logo a semente para ver do que se tratava. Mas, súbito; se espantaram com a nunca vista escuridão que ali surgiu e começou a se espalhar pela terra. Com ela vieram também as criaturas noturnas com coaxos, pios, urros, uivos, gemidos... Não há de ter passado desapercebido aos inventores do folclore amazônico o fato de que, um pequeno besouro, chamado caturra deposita seu ovos sobre a semente do tucumã, donde nasce a larva (comestível, chamada popularmente bararu) que se alimenta da amêndoa até a fase adulta, quando a caturra perfura a dura casca do caroço e sai o coleóptero voando, sempre à noite, pelos campos atraídos pelas lamparinas nas casas de vaqueiro. Restam ao chão, os caroços perfurados para os folguedos infantis, que inventam atirar á distância para escutar o assovio que surde contra o vento. Ou, os fogueteiros das vilas que usam tais caroços de tucumã furados a servir de “foguete de assovio”: motivo de muita caçoada, desavenças e até casos de polícia... Voltemos ao drama da primeira noite.

A Cobra viu logo que os mensageiros tinham desvendado o segredo. Como castigo dos servidores infiéis, dizem velhos caboclos que aprenderam a lenda que os índios seus antepassados inventaram, a Mãe d’água os transformou em macacos-da-noite. Coisa muito curiosa nesta sui generis viagem: que aqui o naturalista Alfred Wallace aprendeu diretamente da Natureza a teoria da evolução das espécies, a par de Darwin nas Galapagos; também os bichos já foram gente. E praticaram eles, por conta e risco dos pajés, a involução das ditas espécies. Talvez, a pena máxima de gente descuidada do privilégio humano, como a teologia condena ao inferno os malvados deste mundo. Mesmo assim, alguma parte do planeta Amazônia ainda há crença na geração espontânea (sapo vira peixe, morcego vira rato). Por arte mágica tem gente que, certas noites, vira porco, cavalo, onça, cachorro... Enfim, sem demasiada novidade; quando se sabe da existência mitológica dos gêmeos amamentados pela loba romana. E da máxima moral, segundo a qual “o homem é lobo do homem”...




Na verdade, no ventre da noite paleolítica a Boiúna depositou seu ovo: daí eclodiu o tempo arqueológico (Carajás e serra Paytuna; rio Gurupatuba, Monte Alegre, Pará; sítios de 9 mil anos antes da era cristã). Ninho de curupiras donde também nasceu e cresceu a “cobra grande” neolítica com suas datas pré-históricas: Ananatuba, 3.200 anos; Mangueiras (ilha Caviana e Contracosta da ilha grande do Marajó), ano 900 a.C; Formiga (Chaves e lago Arari), 100 anos a.C; Marajoara (lago Arari), no ano 400; Aruã (Chaves, Soure, Caviana e Mexiana), de 1400 até as primeiras décadas do século XIX.

As “fases” clássicas da arqueologia marajoara correspondem a diferentes técnicas e estilos da cerâmica encontrada em sítios arqueológicos ditos tesos de camutins; este esquema pioneiro deixou de ter maior interesse científico, mas ainda conserva importância didática. É uma tentativa de “visualizar” o passado pré-colombiano do delta amazônico. Ainda há muito a investigar. Mas os novos viajantes amazônicos não fazem ciência... Quando muito são repórteres curiosos de coisas esquecidas no fim do mundo, e que se metem eles a pensar livremente à modo de filósofo da chuva e da bubuia3 da maré.

No tempo arqueológico, o homem amazônico – que Alexandre Ferreira, classificou com graça um dia, em 1783, H. sapiens, var. Tapuya remetendo logo para Lisboa, com endereço final a Universidade de Coimbra (e pode ser que tenha chegado em Paris como mais adiante se vai dizer); pela primeira nau a bem da ciência a cabeça decepada de um nativo – começou assim a sua odisséia manipulando o barro dos começos do mundo (expressão de Jorge Amado, em discurso de saudação a seu camarada Dalcídio Jurandir, durante sessão solene de entrega do prêmio Machado de Assis, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro) para inventar a cerâmica. Foi, portanto, com o tato que esse criador original começou por modelar a sua arte ancestral. Nada mais natural, portanto, que o viajante comece sua viagem (à imitação do naturalista Alexandre Ferreira) indo a ilha do Marajó.


Um museu no fim do mundo


Uma boa maneira de começar a viagem na Amazônia será seguir os rastos do naturalista de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira; nascido na Bahia, que, em fins do século XVIII, veio ao Estado do Grão-Pará e Rio Negro realizar a monumental Viagem Philosophica (1783-1793), obra abnegada que a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão, em 1808, teria forçado a porta à pilhagem por ninguém menos que o respeitável Geoffroy de Saint-Hilaire. Alexandre Ferreira deu o primeiro passo da Viagem pela emblemática Ilha Grande de Joanes ou Marajó. Sem dúvida, esta é uma ilha-monumento que causa admiração ter ela atravessado os séculos até hoje, sem ter recebido as atenções oficiais que merece da humanidade. Ainda que fosse só pelo fato de ser a maior ilha marítimo-fluvial do planeta (área de pouco menos de 50 mil km², maior do que a superfície dos Países-Baixos), reserva natural da biosfera avant la lettre.

Ir hoje à grande ilha ancestral dos marajoaras sem visitar o Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, é como ir a Roma e não ver o Papa. Claro, o “museu do Gallo” não é o Louvre, trata-se de um museu comunitário, naif; que tem outro modo de história; criado por um extraordinário personagem em busca de um autor... O padre Giovanni Gallo, jesuíta italiano que descobriu o povo marajoara e se fazendo antes advogado dele do que pastor, como fora antes mandado em missão religiosa; rebelou-se contra a hierarquia diocesana que o queria mais comportado em relação aos conflitos políticos locais. Mas, sem se desviar do seu caminho traçado na convivência diária com a parte mais ínfima daquele povo lesado pela história colonial, a sua transgressão foi a ponto de ser desligado dos votos de obediência da célebre Companhia fundada por Inácio de Loyola. Sua suprema rebeldia foi por amor à obra de resgate da memória perdida de um povo extinto: o que por si só já valeria para a UNESCO e outras instituições de ajuda à educação e cultura dos povos sair correndo em socorro, sem mais necessidade dos pobres terem que emigrar ao estrangeiro para serem vistos e reconhecidos pelo mundo.

O qual museu foi capaz de sobreviver pela arte dos seus ceramistas, malmente encontrados nos vestígios dos sítios arqueológicos em tempo de se perder para sempre. Obra obstinada de um homem teimoso que escolheu o seu lugar para morrer, junto a um povo mais teimoso ainda em querer sobreviver ao desastre. Pois bem, em Cachoeira do Arari o sui generis “museu do Gallo” convida o viajante a “ver” o passado marajoara com as pontas dos dedos... Como um cego, talvez, experimentando pela primeira vez a escrita Braille...

Notou O Homem que Implodiu (nome do livro autobiográfico do criador do Museu do Marajó) que a gente marajoara tem por hábito pegar e tocar as coisas com a mão para bem compreender e definir do que se trata. O viajante não se enganou: é pelo sentido do tato que se deve começar a viagem... E assim se reconhecer “cego” neste fim de mundo e começo da (talvez) da ressurreição duma parcela da humanidade, recorrendo a ela com humildade e sabedoria... Então, o Museu do Marajó foi concebido para o povo marajoara ver e conhecer seu passado. Quer dizer – com o dito popular – “não é p’ra inglês ver”... Ou seja, “para enfeitar a vista”... O viajante anota.

O caminho é a viagem. Portanto, para chegar a Cachoeira do Arari o viajante da Amazônia deve ser informado, sobretudo, das “pedras” do caminho tal qual a marcha atribulada do bon sauvage tupinambá em conquista do pôr de sol. Ou seja, do Araquiçaua na Ilha dos Nheengaíbas. Quer dizer, não é fácil chegar e nem se hospedar ali. Pode ser que as dificuldades afastem do destino turistas, simplesmente interessados em comprar lazer e novidades a bom preço e facilidades de varejo. Mas, certamente a falta de conforto em Cachoeira não será empecilho a viajantes do mundo. Não há comodidades e preço baixo, a verdade seja dita, para ir a Katumandu, no Nepal; ou a Cachoeira do Arari, no Marajó: mesmo assim, vale a pena se for para encontrar os princípios do mundo ou de uma civilização perdida.

Chegar aqui é uma aventura, seja por táxi aéreo ou através da estrada de terra (com o “inverno” amazônico, lama) entre Foz do Camará e Cachoeira (que foi desnível duma laje do Arari e hoje está soterrada pelo assoreamento do rio) atravessando os campos. Aí, o roteiro pedirá como guia ninguém menos que o menino Alfredo, nas mãos dele – tateando o futuro como que jogando adivinhação de búzios –, o seu inseparável caroço de tucumã, personagem e alter-ego de Dalcídio Jurandir, no romance marajoara emblemático Chove nos campos de Cachoeira. Por esse caminho “espinhoso” com as palmeiras de tucumã dando adeuses sob o vento, sempre presentes na paisagem e na história; o viajante antes de ir diretamente ao museu como ponto final de peregrinação ao Extremo-Ocidente, no equinócio da “Partição1” do Novo Mundo; poderá visitar a cidade e o rio. E parar um momento na casa de Alfredo. Que foi oficina do romance do Extremo-Norte brasileiro, não por acaso, também moradia de infância do maior escritor dessa gente mestiçada de muitos povos na insularidade da zona tórrida.

Talvez o roteiro do naturalista Alexandre Ferreira seja do agrado do viajante, que virá pelo caminho fluvial do Arari matutando cismas desde a baía. O viajante, enfim, chegando ao “museu do Gallo” guiado ainda pelo escritor de Ponte do Galo e outros romances do menino marajoara Alfredo, será levado daí em diante pelo roteiro do padre Giovanni1: um caminho de volta ao passado a fim de achar uma saída ao futuro. Quem sabe? Começará por uma única porta por onde todos os viajantes hão de passar, a fim de percorrer o labirinto marajoara mais adiante até achar a saída.

Como o rio, aqui também no curso do tempo arqueológico, o viajante não será o mesmo depois de mergulhar uma vez... Mas, para isto, há que transpor a desafiadora porta e responder a duas questões-chave. Primeiro, qual a peça mais antiga do museu? A resposta o visitante achará imediatamente se for curioso e tocar o “computador” artesanal, em madeira, que o criador do museu inventou e construiu com as próprias mãos. Assim, será feita a descoberta geológica da terra. O visitante então “viajará” há milhões de anos, num instante, com a prova na sua mão! Poderá experimentar o tato do tempo sem obstáculo... Mas, em seguida, terá que responder à segunda questão: qual a peça mais nova do museu? Novamente o “computador” Gallo tem a resposta pronta e o viajante terá uma surpresa estonteante. Se – como disse o poeta Pessoa – “a alma não é pequena” e mover com as suas mãos o curioso engenho. Todavia, apesar disso tudo pode acontecer que o visitante permaneça “cego” ao que se queria mostrar. Paciência. Talvez fosse preferível retornar sem transpor aquela porta, pois tudo o mais aparecerá com uma ruína de um povo e região sem mais nenhum avenir... Se, contudo, o efeito da descoberta tiver sucesso: cada peça ali no silêncio dos séculos tomará vida nova. E o audaz viajante terá o seu troféu na lembrança eterna da viagem.




Como o feto humano (o viajante há de lembrar que já foi assim) pouco a pouco desenvolve o sistema nervoso e, provavelmente, começa pelo tato a compreender o mundo aonde irá desembarcar. Assim também o primitivo habitante amazônico começou a experimentar o barro milenar deste mundo para modelar a civilização neotropical que ele deixou como certidão de nascimento e herança a humanidade.

Ainda não se decifrou a “escrita” marajoara a fim de entender a mensagem da humanidade original que aqui plantou sua raiz. Sem ser profeta ou pajé, diante de um monumento neolítico feito de aterros milenares de barro dos começos do mundo surtos pelos campos alagados, como “ilhas” à distância ou camuflados na Jebre2, às ilhargas dos mondongos3, pelo incrível engenho e intuição dessa gente que o mundo esqueceu, o viajante se sente responsável pela memória do lugar, como também pelos destinos do mundo. Assim, com o sentimento da biosfera ameaçada no mundo, ele decide velar pelos sítios arqueológicos do Marajó antes que eles acabem e a diversidade cultural da Terra seja, irremediavelmente, lesada.


A notícia histórica do Arari ou teoria da cobra grande


Arari é palavra aruak significando “rio das araras” (de ara, arara; e ari, rio): assim, as araras estão quase a acabar mas ficou o pleonasmo, quando se diz rio Arari é o mesmo que rio “rio das araras” (sic). O que fazer? Tradutor, traidor... Dizia o sábio português da Bahia, Alexandre Ferreira, sobre o rio Arari1:“É galante a teoria do rio que ouvi a um índio sendo perguntado pela razão daquelas voltas, e portanto escrevo: A Ilha no seu princípio, diz ele, não tinha estes rios mas tinha pela terra dentro infinitas cobras: estas obrigadas das secas corriam do centro para a costa a buscar a água: no caminho que faziam de rastos pela terra deixavam com o peso e grandeza dos corpos impressas nela as suas figuras, assim mesmo tortuosas, e implicadas em torcicolos, como elas são. Caíram as águas das chuvas sobre este rasto que achavam feito, e no seu princípio abriram regatos: engrossaram depois os regatos, e ficou sendo total o grande rio o que não fora, no princípio, mais que um regato da grossura de uma grande cobra.”

O rio Arari foi outrora a primeira parte colonizada da ilha do Marajó, com os primeiros currais de gado levantados pelo colono Francisco Rodrigues Pereira, em 1680, timidamente diante do receio de ataques por parte dos índios bravios, desertores e escravos que viviam refugiados ali. Ora, se a tomada de São Luís do Maranhão data de 1615 e a fundação de Belém, na Amazônia, de 1616; faça o viajante a conta para entender quanto tempo resistiram os nativos à invasão das ilhas, isto sem falar de antes da chegada dos europeus face o avanço dos Tupinambá. Afinal doada a principal delas (maior do que a Holanda) ao ministro d’el-rei Afonso VI, que foi o patriarca dos barões de Joanes que aqui nenhum deles veio visitar em nenhuma vez. Contentados a imaginar a sua longínqua posse distribuindo sesmarias a terceiros através de descansados procuradores no Pará.

Vem daí talvez o aforismo que os caboclos ladinos (praticantes assíduos do abigeato) difundem à beça: os caboclos sabem que os Brancos não sabem... Isto é, ignorância com ignorância se paga. Senhores de latifúndios imensos, os fazendeiros não conhecem mais a sua propriedade do que às proximidades do “corpo da fazenda” e algum retiro5 entregue a criados zelosos. Restam ainda porções ermas isoladas, onde o caboclo mal lembrado de seus antepassados indígenas leva a vida, a bem dizer, fora do mundo no rescaldo da ruína de velhos costumes. Esses feudos de recíprocas ignorâncias são retalhos, talvez, de um passado perdido... Que por alguma maneira misteriosa ainda poderá dar algum futuro aos lesados dos Contemplados1 e enganados das Missões. Quem sabe?

Quando a temporadas das chuvas começa, entre os fins de dezembro até junho, as águas do rio Anajás-Mirim (braço do Anajás Grande e tributário do Arari) em vez de descer “sobem” para o “fundo de prato” com que a ilha se assemelha, até inundar todo o Lago. Só depois então deste último estar farto a corrente desce para a baía do Marajó aonde o rio vai desaguar o seu contributo ao Mar Doce. Na margem do Arari se acha histórica fazenda fundada pelos frades que vieram de Quito, depois da famosa jornada de Pedro Teixeira, de 1637 a 1639. Chamada a fazenda de Nossa Senhora das Mercês, onde o folclore fez morar a Cobra grande debaixo da capela. Diziam os crentes da assombração, antigamente, que não se deve retirar a imagem da santa do altar! Se não, a “monstra” revira-se debaixo e leva embora o barranco com igreja, fazenda e tudo na erosão do rio abaixo...

Muitos rios irrigam a ilha do Marajó, sento o Arari, entretanto, o de mais importância inclusive pela posição em frente à cidade de Belém. Pela margem direita os seus tributários são o Anajás-Mirim, São José, Tucunaré, Cururu, Salitre e Muirim. À esquerda se encontram cursos d’água donde, o igarapé do Severino, Guaiapi, Mauá, Murutucu. Gurupá e Caracará, sem contar outros menores.

Pela costa da baía, abaixo da foz do Arari, contam-se os rios Camará, Maruacá, Guaruari; onde fica o lugar de Condeixa, o Xipocu, junto de Monsarás, o Jobim acima de Salvaterra; o Paracauari, que recebe à direita o Carnaoca e o Jacitaratuba. E pela margem esquerda o Maratacá. Ainda pela baía abaixo do Pesqueiro o Igarapé Oaitama e o rio Cajuipe ou Cajuúna como ficou mais conhecido. Depois o Camarupi, o Cambu, rio de larga embocadura; o Umerituba, e o Jaraú; onde começa o cabo Maguari e o Oceano. O que caracteriza esta ilha como a maior do mundo reunindo rio por oeste e mar pelo leste.

Pela contracosta adiante surge o rio Guaiapoava e um braço que foi chamado rio dos Aruãs e também um ramo à esquerda em direção ao Lago Arari, que é hoje o canal Tartarugas. Segue-se o Ganhoão, o Cajutuba, o Arapixi, o Camarão Tuba e o furo Cajuúna que sai ao Rio dos Anajás, até a ponta do Parauaú. Ou seja, o Rio Pará.

O rio dos Anajás ou Anajás-Grande recebe águas dos rios Cururu e Mocoões, caudalosos; e cursos menores como o Ipecaquara e o rio dos Camotins (este que tem seu nome assim devido à notável ocorrência de tesos ou sítios arqueológicos, da extinta civilização marajoara). Cumpre não perder de vista o fato de que esta ilha grande não apenas excede em superfície os Países-Baixos como também possui topografia peculiar, com uma pletora de rios, canais naturais e formações lacustres de influência marítima inclusive que lembraria, ainda que de longe, a geografia neerlandesa.

Ao tempo da Viagem Filosófica, o Anajás andava “nas meninas dos olhos” do Comandante Florentino da Silveira Frade, diz Alexandre Ferreira. A preocupação da época leva pensar na exploração das riquezas naturais e a agricultura. Segundo parecia as terras centrais da ilha servia para plantar cacau, café, arroz, tabaco e extrair madeira de construção.

Devemos nos lembrar que o relato em tela está baseada na monografia de Alexandre Ferreira de 1783 e que o café viera de Caiena, clandestinamente, furtado pelo sertanista paraense Francisco de Melo Palheta cerca de 1723, há sessenta anos da Viagem Filosófica. Nessa época havia três “fábricas” de lavrar madeira, que serviu à construção da fortaleza de São José de Macapá. As matas dos Anajás tinha muito timbó-titica, timbó-guaçu, e “muita casca preciosa”, porcos selvagens, veados, antas, onças, onças, e “inumeráveis espécies das outras classes de animais”. A exploração econômica de “infinitas” riquezas no Século das Luzes era a grande moda. E as viagens às regiões exóticas longe de satisfazer o espírito procuravam interessar governos e particulares a desenvolver colônias de exploração e realizar negócios de grandes lucros.

A foz do rio Anajás deságua em frente da cidade de Macapá com “infinitas ilhas” e rios até o Parauaú, abaixo de Breves junto ao canal Tajapuru, a caminho de subida do rio Amazonas. Ou de Macapá e das Guianas pela costa do mar. Aqui, a ilha do Marajó faz outra ponta baixando o Rio Pará para baixo o rio Guajará pelo Mutuacá, segue-se o Pexi costa abaixo, até o Paracaúba, em São Sebastião da Boa Vista, adiante do rio Muaná, Atuá e dentro neste o rio Anabiju, segue-se o Igarapé grande Paruru, “despois o rio Marajó-guaçu, que dá o nome a toda a Ilha”, informa o naturalista Alexandre Ferreira. Afinal o Igarapé-Puca (Comprido, na Língua Geral) donde o sábio baiano da Universidade de Coimbra partiu no circuito que o viajante da Amazônia acaba novamente de percorrer entrando pelo rio Arari, contando mais de “cinqüenta e tantos” rios, sem incluir igarapés e lagos.

A civilização lacustre: Ou a peleja da natureza e a fazenda

Conforme a cartografia da Carta da Ilha, que “a seu modo” o Comandante Florentino debuxou, quem entra pela boca do Arari acha à margem esquerda os lagos Murutucu, Mauá (em cujo rio foi levantada a primeira fazenda de gado na ilha, em 1680), Guaiapi. Que também são nomes dos respectivos rios, pela peculiaridade de ser a água da chuva que abastece depressões da terra criando dos ditos “lagos” que servem de cabeceira ou, melhor dizendo, reservatório. O acidente geográfico mais interessante da ilha do Marajó é o grande lago Arari. Ao qual os caboclos chamam apenas de “o Lago”. Como, outrora, os aruaques do Amazonas não davam nome particular ao rio grande (Paraná-Uaçu, dos tupis), para o chamar somente Guiena (o Rio).

Seguindo para o centro da ilha se acha o lago Apeí e à direita do Arari, o lago de Santa Luzia, e enquanto à esquerda fica o de Santa Isabel. O segundo lago em grandeza é o primeiro em mistério: o Guajará. O qual merece, então, ser tratado à parte por ser lugar sagrado das populações tradicionais. Uma velha lenda indígena conta que, em tempos muito remotos, viram cair do céu vinda de alto mar uma “estrela” sobre o lago Guajará. Se isto fosse hoje, haveria quem pensasse logo em “disco voador”, mas os pajés interpretaram apenas como uma mensagem do infinito... Que em contato com a água fria a tal estrela cadente explodiu e se despedaçou em diversas partes.

Os pajés, então, procurando depois de vários dias recolheram fragmentos achados pela margem do lago e confeccionaram deles machados de pedra, mágicos; capazes de operar muitas maravilhas. No Museu do Marajó ainda se encontram machados como esses, com a lembrança antropológica das tais “pedras de raio”. Com que a crença popular acreditava serem esses machados de basalto feitos de matéria sideral (que, de fato, podem ser se a astrofísica e a geologia encontram entre si explicação comum para a formação astronômica da Terra).

Com tão extraordinária história ornando a sua fama, o lago Guajará se converteu em lugar mágico por excelência, na ilha do Marajó. Onde diversos seres encantados têm lá o seu habitat sobrenatural. Os antigos moradores, por exemplo, acreditavam que entre o lago e o rio Paracauari ou Igarapé Grande, afastados um do outro por quilômetros de campinas e matas, existiu algum dia uma passagem subterrânea. Causa do mortal redemoinho ou “giradouro” no leito do Igarapé Grande que separa Soure de Salvaterra: para uns, esse rebojo célebre por muitos acidentes de navegação, é moradia da Cobra grande. A outros, trata-se de portal do reino de seres telúricos chamados caruanas1. Os caboclos relatavam estranhas aparições de remos e pedaços de canoas naufragadas na baía, que, entrando supostamente pelo “fundo do rio”, chegavam até às margens do Guajará, inexplicavelmente.

Um curioso capítulo da luta que se travou entre índios e criadores de gado tem o lago Guajará como foco: trata-se do invento da lenda do Boi Selado. Um animal encantado que saia do lago a fim de desencaminhar rebanhos domésticos. Contam que, em certas noites de lua, o gado curraleiro metido ao curral mansamente, ruminava deitado em calma; mas, de repente ficava arisco, se espantava à-toa. Arrebentava a porteira e a boiada estourava, desembestava pelo campo enluarado se perdia pelo balcedo adentro... Não havia cavalo e nem vaqueiro que alcançasse a manada. Era o Boi Selado, só podia ser (ainda que um descrente jurasse ter sido onça querendo atacar os bezerros, não havia quem o acreditasse, ainda mais quando um pajé jurava ter visto o Boi Selado à frente do curral). A assombração do boi do lago, além de espantar e amoitar o gado longe da fazenda ainda trazia peste e outras doenças para definhar o rebanho...

Até a metade do século XX, a luta pelo controle das águas3 entre fazendeiros e pescadores ainda envolvia o célebre lago encantado. Os primeiros, com ajuda do governo criaram serviço de dragagem em Marajó, do antigo Departamento de Portos e Vias Navegáveis. Que entrou a “limpar” os aturiais e a dragar canal para o dito lago encantado, diante de olhares horrorizados dos caboclos. Que, mudos, assistiam alguma coisa como a profanação de um santuário... Então – dizem alguns – se viu o poder dos encantados. O que as maquinas cortavam e capinavam durante um dia, parece que crescia em dobro na noite... Até que, os Brancos vencidos em seu ímpeto mecânico e desenganados da peleja contra a pujança dos aningais e balcedos bateram em retirada. Ficaram ao léu umas quantas dragas enferrujadas, que as chuvas e a vegetação selvagem cuidaram de apagar, pouco a pouco, da paisagem.

Os mais lagos são, do Guaiapaúba ou rio das Tartarugas, onde houve um lago no braço que chamavam dos Aruãs (o qual manadas de búfalos devastaram). Ao tempo das chuvas, as águas passavam para os lagos do Mocoão e Cururu. Outros rios também têm os seus lagos, que são reservatórios ou “cabeceiras” dos mesmos rios: Ganhoão, Guaiapuca, Anajás, Taraira, Canga, Jacaretuba, Camotim, Maguari, Pracuuba, Atuá e outros. Toda a ilha por dentro se interliga numa rede lacustre, cujos lagos inventam rios em direção ao rio-mar. Por isto, o índio de Alexandre Ferreira deduziu a “teoria” das cobras do Marajó-Guaçu, do Jaburaicá, do Quio, e Caraparó, do Tarauá, do Jobim, do Jatuba e do Paracauari; os lagos grandes das Frecheiras, Laranjeiras e Três Irmãos e Morotim-pecu, e Jacarés, e lago de Carnaoca, e do Cambu, e outros. Sendo que o Arari e o Guajará são os de maior grandeza.

Alexandre Ferreira, em sua viagem, pôde se assegurar através de Florentino Frade e outros informantes que com exceção de um, ou dois rios, a maioria tinha “duas ou três cachoeiras”. Na verdade, simples quedas d’água. Eram travessões baixas que se podiam ultrapassar com a maré enchente. Na atualidade, não há mais tais “cachoeiras”. O que significa dizer que a erosão dos rios os está aterrando inexoravelmente em toda a ilha. Em 1783, do Paracauari abaixo até o cabo Maguari e deste para o Amazonas, voltando ao Atuá, existiam cachoeiras ou beira de pedras. Desde o Paruru abaixo até o Igarapé-grande ou rio Paracauari, abaixo de Salvaterra, há uma barreira de pedras, donde a parte mais característica chama-se Ponta de Pedras, que avança para o mar.
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Glossário:

Teso - Sítio arqueológico formado por aterro sobre savanas inundáveis, onde se encontram cemitérios dos índios marajoaras e vestígios de suas aldeias; as cerâmicas mais antigas datam até 1.100 anos a.C., na chamada fase Ananatuba.

Boiúna - do tupi “boi”, cobra, e “una” negra; a cobra grande mitológica em referência à lenda da primeira noite do mundo.

Camuntins - urnas funerárias achadas em aterros arqueológicos servindo de cemitérios e aldeias (cf. Betty Meggers e Clifford Evans; Anna Roosevelt e outros). Os tesos são monumentos neolíticos da maior importância para o estudo do homem do Novo Mundo. É erro confundir “camoti” (urna cerâmica para enterramento secundário em culturas circum-Caribe) e “igaçaba” (vasilha para depósito de água, em língua tupi ou Nheengatu). Pesquisas em curso pelo Museu Goeldi apontam para revisões consideráveis: as “fases” podem ter sido contemporâneas umas às outras. A fase (ou estilo, melhor dizendo) marajoara (nome arbitrário) teria chegado até cerca de 1600, lado a lado com a cerâmica “decadente” dos Aruãs... O eventual encaminhamento por Brasília e reconhecimento pela UNESCO da candidatura da ilha ao título de reserva da biosfera, em atendimento à reivindicação dos próprios marajoaras será uma maneira de resgatar e preservar esse importante passado neotropical.

Bubuiar - verbo de raiz tupi, através da Língua Geral; significa vagar ao sabor da correnteza: a etimologia se refere a coisas flutuantes sobre a superfície das águas.

“O testamento de Adão” - tratado de Tordesilhas (1494) contestado pelo rei François I, da França, dividindo os ultramar entre Espanha e Portugal; homologado pelo papa Alexandre VI – cujos limites por um meridiano a oeste de Cabo Verde passaria supostamente às proximidades da Ilha do Marajó, cortando as atuais cidades de Belém (Pará) e Laguna (Santa Catarina), no Brasil.

Dalcídio Jurandir - escritor marajoara de expressão universal, prêmio “Machado de Assis” da Academia Brasileira de Letras, pela série de romances denominada Extremo-Norte, foi incentivador intelectual da obra literária de Giovanni Gallo; nasceu na ilha do Marajó na vila de Ponta de Pedras (1909), cresceu em Cachoeira do Arari e faleceu na cidade do Rio de Janeiro (1979).

Giovanni Gallo - missionário jesuíta nascido em Turim, Itália (192?), naturalizado brasileiro, fundou o Museu do Marajó às margens do lago Arari, no município de Santa Cruz do Arari; transferido em 1981 para Cachoeira do Arari; morreu em Belém (2003) e foi sepultado ao lado do referido museu. Autor de "Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara", "Marajó, a ditadura da água" e da autobiografia "O homem que implodiu". Conforme testemunho de Maria de Belém Menezes, filha do poeta Bruno de Menezes, uma correspondência entre Belém e Rio de Janeiro serviu de estímulo intelectual do escritor Dalcídio Jurandir para o padre dos pescadores de Jenipapo transformar em livro os artigos e reportagens que escrevia na imprensa regional, contribuindo assim à divulgação do Museu do Marajó.

Jebre - Brenha da mata ciliar geralmente submersa ao tempo das cheias, próximas à Contracosta da Ilha do Marajó.

Mondongos - Formação palustre nas partes mais baixas da microrregião de Campos do Marajó, berçário da fauna aquática por excelência.

Origem dos rios - Trecho da Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó (1783), primeiro trabalho do naturalista na Amazônia, publicado em separata da Viagem Filosófica.

Marajó - Dizem os cabocos em português “do” e não “de” Marajó. O motivo é simples: a toponímia tem origem no índio “malvado” que ali habitava, segundo a geografia dos Tupinambá (justamente o bom selvagem de Rousseau e Montaigne): marã, é raiz de “mau”, “malvado”; com a desinência “yá/ yu / yó”, que significa gente, povo. A maldade dos ilhanos era defender as suas aldeias da invasão dos que as queriam conquistar, armavam-se eles de mortíferas setas envenenadas de curare lançadas com zarabatanas em emboscadas. Et pour cause, a contra-propaganda já existia na Amazônia quando os europeus chegaram por aqui.

Abigeato - Costumeiro roubo de gado, com fundamento na história colonial do lugar (que verdadeiros criminosos aproveitam nos seus negócios ilícitos, fomentados ademais por contrabandistas a custa de miseráveis cabocos).

Corpo de fazenda - A “casa grande” ou sede da fazenda com o curral principal e o gado manso.

Retiro - Extensão da fazenda com casa de vaqueiro e curral.

Contemplados - Senhores aquinhoados pela privatização das Missões dos jesuítas, expulsos do Pará em 1757.

Fábrica - Serraria rústica onde o machado e a serra manual manobrada por trabalhadores (geralmente escravos) eram as principais ferramentas. Existe um rio ou confluência da foz do Curral-Panema com o Arari, junto à ilha de Sant’Ana; que recebe o nome significativo de Rio da Fábrica ou Rio Fábrica, neste caso era uma oficina de sela de propriedade dos Mercadários sesmeiros daquela ilha.

Caruana - nome que se dá na Pajelança (conjunto de crenças e procedimentos xamanísticos indígenas, que constitui a arte terapêutica e mágica dos pajés) a espíritos telúricos (animais, plantas e seres mágicos) da encantaria marajoara.

Balcedo - terreno pantanoso, de vegetação cerrada, onde o “gado do vento” (selvagem), arisco; se refugiava; conforme ensina Vicente Chermont de Miranda, no Vocabulário Paraense.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

cultura marajoara, uma expressão da anima mundi

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que significado um caboco filosofante poderia dar à passagem de dois pesquisadores e artistas italianos como Stefano Ricci e Claudio Franchi num lugar simbólico da amazonidade, como é o caso do São José Liberto, em Belém do Pará?

para ensaiar resposta à altura do momento que se nos oferece, comecemos por abordar a persona dos ilustres visitantes. Claudio Franchi, artista multidisciplinar, dedica-se a estudar antiguidades e história da arte para daí recuperar e conservar o patrimônio mundial na espiral evolutiva de seu desenvolvimento contínuo. Ele estabelece nova forma de conceber e fazer arte. Especialista em ouro e prata, cria técnica formal aplicada a revisitar códigos expressivos do passado com vistas à invenção duma linguagem contemporânea. Foi este famoso ourives quem fez o anel do Pescador para o Papa.

Ricci é esteta que pesquisa formas pluridiversas da natureza em diferentes espaçotempos e as traduz na profusão do mundo da cultura para a arte do desenho. Portanto, ele é poeta da imagem e investigador da linguagem da paisagem que se transforma em civilização. A conexão que ele faz entre palafitas da velha Veneza e manguezais do arquipélago do Marajó é genial. Com toques mágicos de Midas transmutando miséria em riqueza e apurado exercício geométrico, Ricci é capaz de ver e compreender num relance o que o vulgo custaria a enchergar durante uma vida inteira. Assim, ele toma da existência de um animal ameaçado de extinção ou fragmento de artefato arqueológico a matéria-prima desqualificada para fazer dela uma peça de rara beleza recuperada de um tesouro perdido.

Ricci e Franchi dentre outros caçadores de tesouros, foram atraídos pelo grande rio das amazonas e terminaram por descobrir as ruínas abandonadas da antiga arte marajoara. Face às piores notícias do desastre colonial e do abandono da cultura marajoara de mil anos eles mostram o caminho da renascença. Não sabem talvez qua há 20 anos a Constituição do estado determina levar em conta no planejamento econômico a vocação da região e o bem-estar da gente marajoara.Que há mais de setenta anos Heloisa Alberto Torres anunciou ao País inteiro, estar na ilha do Marajó o mais importante patrimônio arqueológico brasileiro do qual se fala como ruína deste 30 de novembro de 1756... Daí foram arrancados e levados várias peças e coleções para Chicago, Rio de Janeiro, Paris, Londres e outras cidades do país e exterior sem nenhuma consideração ou compensação para as desletradas populações locais. Giovanni Gallo foi até hoje o único que viu na pobreza da população a riqueza que Ricci e Franchi estão nos revelando através da arte do São José Liberto.

A passagem deles nesta Belém da Amazônia deve ser considerada no conjunto do contributo da Itália à invenção da Amazônia no seio da latinidade. Impossível falar de arquitetura em Belém do Grão Pará sem lembrar de Landi, porém mais do que se vê em forma concreta o olhar italiano na Amazônia nos ensina a ver o peso imponderável da cultura autóctone que permanecia oculta na paisagem debaixo de nossos olhos cegos de tanto ver. E, portanto, quando se olha com arte coisas mortas elas se transformam em processos vitais. Que nem Picasso com poucos traços era capaz de transformar um esqueleto de peixe deixado no prato ao fim duma refeição num debuxo de desenho.

Quero me referir, por exemplo, a um Ermano Stradelli em viagem interior pelos rios da Amazônia na busca do Homem supostamente do passado cada vez mais presente num mundo contemporâneo fadado à decadência... E, sem dúvida, ao pirandeliano jesuíta que foi inventor do primeiro ecomuseu da Amazônia - o Museu do Marajó - Giovanni Gallo. A Itália se fez presente nesta região através de Portugal desde o primeiro momento (não podemos esquecer que a história dos descobrimentos marítimos começa nas cidades-estados italianas para se estabelecer mais tarde em Sagres, antes do Descobrimento).

Isto explica talvez a razão pela qual a Alemanha tão decisiva no Novo Mundo não teve colônia diretamente, mas exerceu e exerce influência na América Latina através da Espanha, na fase colonial. A Itália chegou no Brasil através de Portugal. Uma figura fortemente portuguesa como foi o Padre Antônio Vieira, célebre Payaçu dos índios na missão na Amazônia, como Silvano Peluso ensina foi autor duma obra apaixonante chamada a "Chave dos Profetas" movido por sua utopia evangelizadora para advento do reino de Jesus Cristo consumado na terra sob o trono espiritual de Roma e material de Lisboa. A arqueologia das idéias, portanto, é o divã (para não dizer a rede, hamaca) da psicanálise da história.

se a gente compreender bem a "Viagem Filosófica" (1783-1792) logo irá saber que o sábio baiano de Coimbra foi discípulo do italiano carbonário Domenico Vandelli, naturalizado português como Domingos Vandelli. Há que considerar ainda Landi naturalista que, certamente, orientou a excursão de Alexandre Rodrigues Ferreira ao Rio Negro, pelo menos, onde o arquiteto havia estado a serviço da demarcação de limites, em Barcelos-AM.

não podemos nos esquecer que o italiano Giovanni Balby (memorizado com a rua João Balbi, em Belém) teve papel articulador na Adesão do Pará à Independência do Brasil e que o sogro do marajoara Antônio Pedro de Azevedo, lider da proclamação da dita Adesão na vila de Muaná, em 28 de maio de 1823; era o italiano Custódio Calandrini, homem de ideais republicanos com negócios na colônia francensa das Guianas. Outro italiano notável na história da revelação da Amazônia profunda foi o sociólogo Pasquale di Paolo, o primeiro a chamar atenção do público para o papel do "contágio" republicano no Pará através da Guiana francesa, que esteve na origem da revolução popular da Cabanagem (1835-1840).

estamos falando, pois, de Paraíso e Inferno na dialética mundializante entre o velho e o novo mundos... No meio disto tudo uma tênue ponte com pilar invisível no Museu do Marajó (esta enjeitada invenção local da Latinidade global). Giuseppe Garibaldi e Anita Garibaldi no extremo-sul brasileiro armando conexões da República universal: no extremo-norte o índio sutil Dalcídio Jurandir, o romancista da "Criaturada grande" (populações tradicionais amazônicas), autor de "Linha do Parque" no Rio Grande do Sul; que por acaso veio a ter na família um genro paulistano de origem italiana... Então, para encerrar o discurso neolatino acerca do São José Liberto e os italianos, toda viagem é única mas a viagem filosófica continua.

Como no rio de Heráclito, não se mergulha duas vezes no Amazonas: aqui o paraíso e o inferno são vizinhos ao limbo canônico onde as populações tradicionais vegetam esperando Godot. Dante permanece no meio do caminho da selva escura da qual, de tempo em tempo, algum novo viajante vem desvendar na paisagem invisível o tempo arqueológico sempre vivo.

domingo, 5 de setembro de 2010

antiga arte marajoara

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graças a gentil convite do amigo Paolo Carlucci, no dia de hoje tive prazer de assistir a magnífica aula de Stefano Ricci e Claudio Franchi sobre a cultura, imagem e simbolismo da Amazônia no mundo com ênfase na antiga arte marajoara. Escrevo esta simples nota para registrar este acontecimento, mas pretendo retornar mais tarde para avançar numa reflexão cujo início está no ano de 1999, quando a leitura de "Viagem a Portugal", de José Saramago me motivou a revisitar a "Viagem Filosófica" do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira e a escrever o ensaio "Novíssima Viagem Filosófica" (1999) e em seguida "Amazônia Latina e a terra sem mal" (2002).

ora, a "Novíssima Viagem" é uma garrafa de náufrago lançada à corrente metafórica da cultura em busca de conexão entre a a ilha do autor e o velho mundo ocidental. O segundo ensaio assume a mestiçagem cultural desta latinidade periférica que devora a grande civilização imperial e a transforma - ou seja, dá a ela outra forma - sem renunciar às diversas heranças que a geraram.

o tema do "paraíso" está presente nestes ensaios saídos da grande ilha do delta-estuário da Amazônia: mas, o que ressalta é a contradição do "inferno verde"... Trata-se da dialética histórica entre a realidade e o sonho em todas extensões da Terra. De certo modo, a "Novíssima Viagem" e a "Amazônia Latina" foram responsáveis pela boa camaradagem intelectual com Paolo Carlucci, Sergio Nunes, Maurice Gey, Fernando Silva e outros bons amigos e amigas com os quais trabalhamos a ideia e imagem "autrement" da Amazônia. Este trabalho sensível e discreto teve momentos significativos por ocasião da vinda ao Pará de Fernando Silva com o grupo folclórico de Barcarena (Portugal) "Macanitas" que falam pela dança a história social do trabalho em nossa antiga metrópole; Jack Lang, o eterno ministro da Cultura de Mitterrand, que veio ao Pará numa embaixada de amizade pessoal e deixou uma larga porta aberta entre Belém e Paris; o sociólogo do Ócio criativo Domenico de Masi, que viu em Marajó o paraiso a ser reconquistado para a economia da cultura pós-industrial; e ultimamente Stefano Ricci e Claudio Franchi, no polo joalheiro São João Liberto: outrora lugar terrível onde pobres ladrões de gado remanescentes das tribos extintas do Marajó e o romancista da Amazônia, Dalcídio Jurandir; purgaram suas penas. A dialética "Paraíso" e "Inferno". Eu não creio em alquimia, mas ela existe...

domingo, 15 de agosto de 2010

O dia que o Grão-Pará se tornou Amazônia brasileira

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"há um esboço de revolução, vem a contra-revolução que reprime e extrai algumas poucas teses do movimento inovador e as aplica a seu modo, conciliando e esvaziando o conteúdo histórico", José Honório Rodrigues, apud Carlos Guilherme Mota.


Segundo foi estabelecido nas efemérides paraenses, no dia 15 de agosto do corrente se completariam 187 anos em o Grão-Pará deixou de ser província de Portugal e passou a ser a Amazônia brasileira. Mas, o fato corresponde à verdade histórica? Persiste controvérsia sobre a data e circunstâncias da verdadeira Adesão do Pará à independência do Brasil, no ano de 1823, quando a colônia portuguesa se integrou ao Império brasileiro. Do ponto de vista da resistência anticolonial paraense, o movimento de 14 de abril pró-Independência pronunciou-se claramente nas ruas da Capital (restando nos nomes de rua no bairro do Umarizal) e proclamou soberanamente, com a formalidade necessária, a adesão no dia 28 de maio, na vila de Muaná (onde existe monumento e praça pública alusiva à data com o nome dos heróis), na ilha do Marajó: o que aconteceu posteriormente foi a brutal repressão colonialista ao povo paraense com mortos, feridos e condenados à morte sendo deportados para o cárcere de São Julião (Portugal). Enquanto isto, no Maranhão, o almirante Cochrane com frota mercenária contratada por dom Pedro I, Maranhão despachava o tenente John Pascoe Greenfell ao Pará, com fingimento, dar ultimato à guarnição militar fiel ao regime de Lisboa.

Que fez, então, em Belém do Pará o agente imperial inglês? Em vez de logo contatar os nacionalistas e lhes oferecer garantias à Adesão paraense já manifestada em 14 de abril e proclamada pelas lideranças do povo em 28 de maio, como era de esperar, e com estes ao lado forçar rápida capitulação portuguesa, foi o mercenário sem delongas ameaçar de bombardeio a Cidade. Em seguida ele parlamentou com o governo colonial e ao cabo da confabulação saiu o vergonhoso ato de “adesão” de 15 de agosto de 1823... A Data-Magna e feriado estadual dos paraenses desmemoriados.

Na realidade, arrancado debaixo de canhões e baionetas alugadas a dom Pedro I, o acordo anglo-português de falsa capitulação e rendição das forças coloniais portuguesas no Pará abafa e tira de cena a luta independentista do povo paraense coerente com sua antiga história em sempre pertencer a velha terra dos Tapuias ao grande país do Cruzeiro do Sul (conhecido outrora pelos índios da Amazônia como o Arapari). Assim, com astúcia de parte a parte em prejuízo do povo, velhos coloniais foram mantidos no governo sob o novo pendão imperial à sombra tutelar da Inglaterra. Ora, o reino de Portugal e o Reino Unido tem longa tradição de aliança e, curiosamente, nosso primeiro imperador era príncipe herdeiro do trono português (depois de renunciar ao trono brasileiro dom Pedro I do Brasil foi ser Pedro IV de Portugal). Todavia, a repressão aos nacionalistas paraenses não cessou, desde então reforçada pelos mercenários ingleses a proteger o antigo regime colonial travestido em brasileiro. Eis o simulacro desta “adesão” pra inglês ver... Até a partida da tropa de Greenfell, quando os nacionalistas derrubaram o governo portuguesista e o agente de Cochrane voltou à cena furioso, a cometer barbaridades contra o governo do povo, humilhando o líder paraense cônego Batista Campos amarrado a um canhão com morrão aceso, fuzilando aleatoriamente a uns e outros até terminar pelo frio assassinato de 252 patriotas nos porões do brigue “Palhaço”, a fim de impor terror à população. Uma vergonha nacional para ser considerada Data-Magna a causa de tamanhas arbitrariedades! Desde então, uma série de perseguições e crimes em nome do governo do Império levando à agitação e paroxismo popular (objeto de estudo do Barão de Guajará, cujo solar é sede do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP); dos célebres “Motins Políticos” que levaram à convulsão popular da Cabanagem). Certo, em 12 anos – de 15 de agosto de 1823 a 14 de agosto de 1835 – o Pará velho de guerra pegou fogo e o povo assumiu o poder em armas (1835-1836). Historiadores conservadores escondem os crimes do Império no genocídio dos cabanos (30 mil mortos numa população de, aproximadamente, 100 mil habitantes) sob falsa acusação de separatismo: na verdade, ao contrário, uma longa luta popular para a brava gente do norte ser brasileira de parte inteira.

A míngua acadêmica

A míngua de interesse acadêmico sobre questões como esta dificulta revisão da historiografia petrificada em compêndios oficiais, mas revela permanência da ideologia neocolonial que animou a criação do respeitável Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) sob mecenato de dom Pedro II. Contudo, sem renegar o contributo do IHGB e seus congêneres nas províncias do Império na formação da história da História do Brasil. Mas, ultimamente, vem prosperando contracorrente a partir de Capistrano de Abreu, o primeiro historiador que deu importância a elementos populares menos elitistas descrevendo a história socioeconômica do Brasil.

A novidade historiográfica implica na real inclusão de índios, negros, mestiços, cristãos-novos, moçárabes, missionários e aventureiros antes marginalizados nos principais acontecimentos que levaram à invenção do Brasil e da Amazônia. As duas colônias portuguesas nas Índias Ocidentais nascidas sob os termos do Tratado de Tordesilhas (1494-1750) e o mito do espaço vazio; ainda escondem evidências da civilização neotropical pré-colombiana.

O mito das “amazonas” apagou a existência de milhões de amazônidas e extingui milhares de línguas e culturas diferentes do “rio Babel” (Amazonas). Sonho sebastianista de conquista de corações e mentes selvagens pelo visionário padre jesuíta Antônio Vieira, a fim de edificar desde as bases ultramarinas o “Quinto Império do Mundo” – messianismo marrano que levaria o payaçu dos índios a se aproximar do rabino português de Amsterdã, Menasseh ben Israel; com a famosa teoria segundo a qual índios americanos descendem de judeus do Cativeiro da Babilônia, as Tribos Perdidas; e a ser condenado pelo Santo Ofício por heresia judaizante – ; debaixo do domínio espiritual do Bispo de Roma e soberania territorial do rei de Portugal.

Não viu o padre grande, todavia, grande crítico da cegueira de colonos e cortesões, que sua utopia evangelizadora (filha da cultura apocalíptica ocidental) caia como luva à mitologia de seus índios protegidos que ele buscava “resgatar” em rios distantes a catequizar para maior glória de Deus e grandeza material do reino de Portugal mediante arriscada conversão e investimento econômico dos judeus. Operação político-teológica que, supostamente, apressaria o parto do reino de Cristo na terra revelado no livro do Apocalipse.

Antônio Vieira, pois, sem a controvertida missão do Grão-Pará (1652-1661), a famosa lábia e seus notáveis delírios retóricos fazendo dele o elogiado “imperador da língua portuguesa” (segundo o poeta Fernando Pessoa), a criticar o barroquismo europeu decadente pelo emergente barroco latino-americano nos famosos Sermões; por certo, não seria ele o Padre Vieira que se conhece. Seus nove anos como missionário na Amazônia se não o qualificam para ensinar como escrever História do Brasil (como os dez meses apenas do naturalista von Martius a palmilhar a região amazônica, desconhecida na corte do Rio de Janeiro, credenciaram o nobre alemão junto ao IHGB), pelo menos o payaçu dos índios deveria ser mais consultado a respeito da história indígena brasileira dos tempos de ruptura da incontornável “linha” de Tordesilhas. Ou seja, sem o inverossímil acordo do padre grande e os sete caciques da ilha do Marajó (27/08/1659) custa crer que o esperanto jesuítico chamado Nheengatu ultrapassasse as ilhas do Pará para dentro do Amazonas, servindo de ponte à língua de Camões rio acima

A dialética das aldeias das missões foi o grão Pará revolucionário a longo termo. Ao se observar a germinação da semente catequista em chão tapuia e o crescimento da safra pode-se ver o peso da força bruta dos cabanos em gestação nos antigos acontecimentos pertencentes à história oral raramente transcrita e bem compreendida na poeirenta crônica colonial. Origem secular do papel precursor do cônego Batista Campos como caudilho da Cabanagem e fecundação eclesial de base da chamada teologia latino-americana da Libertação.

Ao contrário dos europeus, o Bom Selvagem não buscava o paraíso perdido; mas achar o país do futuro, dito Yby Marãey (terra sem mal) profetizada por caraíbas praticantes da bárbara eucaristia antropofágica. Afinal de contas, o evangelho jesuítico não livrou a religião dos índios da diabolização imposta pelo mau juízo e ignorância dos frades capuchinhos da França Equinocial, porém os pajés-açus souberam assimilar a religião do colonizar e inventar com ela o catolicismo popular onde coexistiram deuses africanos, santos da igreja e santidades indígenas. Desde então, a biodiversidade ficou sendo irmã da diversidade cultural brasílica.

A revisão historiográfica há de saber, fundamentalmente, se de fato menos de uma centena de portugueses e mamelucos de Pernambuco sob pavilhão da União Ibérica foram bastantes para conquistar o populoso e selvagem “rio das amazonas”, um novo Nilo em nascimento no novo continente. Ou, pelo contrário, se foram muitas vezes astutos caciques e caraíbas que atraíram aventureiros e corsários estrangeiros para suas causas na ambição natural de obter aliados dotados de armas de fogo e grandes navios à vela até solução final do conflito de fundo étnico o mais antigo da região. Dados coloniais e pesquisas antropológicas demonstram que povos indígenas tapuias (não-tupis) das Ilhas e do Amapá ansiavam por se estabelecerem na margem meridional do rio Pará e que, por outra parte, invasores tupinambás vindos através do Nordeste guerreando contra os tapuias em busca da mítica “terra sem mal” pelejavam intensamente pela posse do vasto território ribeirinho, portal da Amazônia.

A gente da terra Tapuia (Amapá e Pará) praticava guerra de guerrilhas, à moda Aruak naturalmente, com zarabatana e flechas envenenadas contra os invasores, por este fato bélico ficou célebre na tradição oral tupinambá o índio inimigo de emboscada (marãyu / marajó, homem “malvado”), herói inimigo invejado que produzia terror e ódio ao bravo guerreiro conquistador da Amazônia. Hoje historiadores com auxílio de recentes pesquisas sobre arqueologia e antropologia amazônicas do período pré-colonial podem verificar que é insustentável a tese da conquista portuguesa, com tão parcos recursos próprios, se não contasse com a aliança indispensável do Bom Selvagem. Eis o paradoxo amazônico: sem índios e sem mitos a história seria outra!

Sem desmerecer o papel do soldado português, é lógico que os portugueses colonizaram a Amazônia, a partir de 1640, com a restauração da independência de Portugal. Mas a conquista foi indígena e mais sangrenta do que parece. Sem arcos tupis e remos tapuias a manutenção do território seria impossível, cuja pacificação impossível pelas armas acabou sendo promovida pela atuação, à beira da loucura, de missionários movidos pela fé e sertanistas façanhudos seduzidos pela descoberta de ouro.

A realidade histórica até a segunda metade do século XVII que a Cidade do Pará (Belém) contava apenas com algo em torno de 80 “habitantes” (portugueses), fora os padres, escravos (indígenas cativos) e índios. Ou seja, multidão de diversas nações indígenas livres, em guerra permanente entre si ou ao lado de aliados estrangeiros também estes em luta com seus concorrentes europeus pela posse do território. A “linha” de Tordesilhas não permitia a Portugal ultrapassar a baía do Marajó: mas, debaixo da bandeira da União Ibérica, o capitão Pedro Teixeira representando as armas de Portugal partiu de Belém do Pará (1637) e retornou (1639) de sua célebre viagem a Quito (Equador) plantando marco na futura fronteira do Brasil com o Peru e Colômbia. Só? Não. Pedro Teixeira e seus oficiais e soldados foram levados e trazidos por 1.200 animosos índios tupinambás, os quais apenas refeitos do massacre que sofreram em mãos dos portugueses, entre outros o próprio Teixeira; em represália ao levante indígena de 1619, liderado no Maranhão pelo cacique Pacamão e no Pará por Guaimiaba (Cabelo de Velha); não se furtaram a lutar ao lado dos antigos inimigos Perós (lusos) pelos quais haviam abandonado os amigos Mair (franceses).

O que sucedeu, então? Que foi preciso esperar o início do século XX para começar a compreender a saga do Bom Selvagem (Curt Nimuendaju, São Paulo, 1920). Conservar a lógica da historiografia colonial, na História do Brasil, não tem futuro. A verdade histórica (grosso modo) é que foi o índio que deu o território, o negro enraizou a cultura e o português inventou o estado brasileiro, todos estes elementos juntos inventaram o Brasil e integraram a Amazônia, desde a ruptura da União Ibérica (1640): de modo que a Adesão do Pará, em 1823, foi precedida de 164 anos desde o fim da guerra hereditária entre tupis e nheengaíbas, em 1659, conjuntamente às pazes entre portugueses e os mesmos nheengaíbas através dos sete caciques ( Anajás, Aruãs, Cambocas, Guaianás, Mamaianás, Mapuás e Pixi-Pixi).

Mas, os historiadores da Amazônia não viram ainda, exatamente, que a missa relatada pela inventiva do payaçu Vieira, na improvisada igreja do Santo Cristo, ocorrida há mais de 350 anos na atual reserva extrativista florestal de Mapuá; ato solene – inventado ou real –, que esconde algo mais que a simples suspensão das hostilidades dos índios das ilhas contra colonizadores do Grão-Pará. Foi, na verdade, confirmado pelos fatos uma trégua extraordinária entre as duas poderosas etnias indígenas do delta-estuário. Sem estas pazes do rio dos Mapuá não poderiam os jesuítas estabelecer as aldeias de Aricará (Melgaço) e Arucaru (Portel) e começar a catequese dos temidos marajoaras, levados para a margem direita do rio onde eles estavam ou desejavam estar desde o começo do conflito com os invasores tupinambás descidos do Tocantins. Sem esta providência preliminar, com certeza, não se poderia conservar o Pará nem explorar o Amazonas e seus tributários. A expedição de Pedro Teixeira não seria diferente, para efeito prático do uti possidetis do Tratado de Madri (1750) que revogou Tordesilhas; da frustrada tentativa castelhana através do infeliz capitão Francisco de Orellana, de colonizar Nueva Andaluzia (Amapá e Baixo Amazonas).

Mas, a historiografia colonial, desconhecendo o empolgante mito tupinambá e sua cultura guerreira; quer fazer acreditar que o milagre de Santo Antônio permitiu aos frades do convento do Una levar na conversa um milheiro de índios encapetados pelo espírito Jurupari contra protestantes holandeses e britânicos fortificados no Xingu, Gurupá e Amapá com seus camaradas nheengaíbas (Aruaques insulanos). Assim, de fato, rompeu-se a “linha” de Tordesilhas que dava as ilhas do Marajó, Amapá e o Amazonas inteiro a Espanha. Mas, a antropologia diz que a religião dos tupinambás é a vingança e que a guerra era para essa gente leit motif da conquista do paraíso selvagem: aquela cobiçada terra mágica onde acreditavam não haver fome, trabalho escravo, doenças, velhice e morte...

Então, os caraíbas provavelmente tiveram que se unir ao odiado português com suas armas de fogo e caravelões, para vencer a resistência do inimigo hereditário falante da “língua ruim” (nheengaíba, na verdade diversas línguas de tronco aruaque)//

Na Amazônia, quando a história claudica a geografia explica. Para a pesquisa histórica não podem as precárias fontes dos primeiros séculos de colonização prevalecer “ad eternum” sobre o desenvolvimento dos recursos modernos que já se dispõe. Sobretudo, o avanço da democracia e dos direitos humanos que exige inclusão social das populações tradicionais marginalizadas pelo colonialismo deve começar pela recuperação da memória e do papel histórico dos antigos senhores das regiões amazônica. Sabemos que assim como as mulheres em geral não dispunham de direitos de cidadania plena; os índios e os negros foram confinados no limbo da História pela a Igreja e o Estado colonial no antigo pacto entre o trono e o altar.


"Como se deve escrever a história do Brasil"


A Cabanagem (1835-1840) foi a guerra civil amazônica ocorrida na primeira metade do século XIX, periferia da revolução industrial, levada a efeito pelas “classes infames” da população. Depois que a calma voltou a Amazônia, o naturalista bávaro Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) chegou a Belém do Pará e subiu o rio Amazonas coletando espécimes botânicos durante dez meses até Santarém, donde voltou para a Europa depois de três anos pesquisando a flora brasileira subsidiado pelo rei da Baviera, Luis I e o imperador dom Pedro II.
Martius inverteu o mito do bom selvagem, e le acreditava que os índios eram remanescentes degenerados de povos "superiores", que haviam construído cidades, monumentos e códigos "evoluídos". Suas críticas à crença no bom selvagem foram diretas, dizendo ele:
“Ainda não há muito tempo era opinião geralmente adotada que os indígenas da América foram homens diretamente emanados da mão do Criador. (…) Enfeitado com as cores de uma filantropia e filosofia enganadora, consideravam este estado como primitivo do homem: procuravam explicá-lo, e dele derivavam os mais singulares princípios para o Direito Público, a Religião e a História. Investigações mais aprofundadas, porém, provaram ao homem desprevenido que aqui não se trata do estado primitivo do homem, e que pelo contrário o triste e penível (sic) quadro que nos oferece o atual indígena brasileiro, não é senão o residuum de uma muito antiga, posto que perdida história.”
As ideias e preconceitos de von Martius são fruto do século XIX, época da eugenia do mundo civilizado. Desde o período colonial acham-se “histórias do Brasil” que são relatos de funcionários, missionários e viajantes com registros de fatos e observações sobre a vida e costumes dos habitantes do Brasil, entre os séculos XVI e XVIII. A preocupação com uma história nacional começa na Regência do II Império, a partir da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, projeto de uma história do Brasil em um momento que a classe dirigente buscava consolidar o estado imperial.
O IHGB organizou premiação para o melhor modo de escrever a História do Brasil. O ganhador do concurso foi von Martius, em contato com a disciplina histórica na Europa, particularmente na Alemanha; propondo uma história ao mesmo tempo filosófica e pragmática centrada na formação do povo, incluindo nesta a "mescla das raças" brasileiras. A monografia de von Martius "Como se deve escrever a história do Brasil" expressou preocupação com a ideia de um passado nacional, comum a todos brasileiros, tendo início com o surgimento político do Brasil independente. Quer dizer, o “passado nacional” nestes termos não chegaria nem mesmo ao descobrimento de 1500.

De volta para o futuro da pátria amada

Hoje se sabe que é o presente que explica o passado, não o contrário. Os mortos não governam os vivos como os positivistas diziam, mas os vivos sepultam ou ressuscitam mortos para inventar o futuro: o sebastianismo ensina... Há 10 mil anos migrações asiáticas chegaram a Amazônia povoando o território com diversos grupos paleolíticos. Os quais, pouco a pouco, foram adaptando-se ao ambiente neotropical e diferenciando-se de acordo com o habitat. No processo amazônico de antropização surgiu na ilha do Marajó, cerca do ano 400 DC, a primeira cultura complexa (sociedade de classes) da Amazônia: a Cultura Marajoara. Por que este fato histórico – passagem do estado natural humano para cultura complexa – aconteceu primeiramente na foz e não no médio ou alto rio Amazonas? O bioma fluviomarinho explica aqui e agora (com concurso da ciência) o que aconteceu no passado e o que pode acontecer no amanhã.

A lei nº 5.999, de 10/09/1996, aprovada por deputados estaduais do denominado Palácio Cabanagem e sancionada festivamente pelo governador do Estado do Pará considera o dia 15 de agosto a Data-Magna de Adesão da Província do Grão-Pará à Independência do Brasil declarando este abençoado dia o maior feriado estadual: bom para trabalhador paraense (descendente de cabanos e antigos cativos da Casa das Canoas arrancados das aldeias de altos rios para faxina ordinária da Cidade e conquista dos sertões amazônicos) ficar no lar doce lar a folgar ou ir ao bar bebericar, bater bola em campinho de futebol, ver show de calouro na TV etecetera e tal. Afinal de contas, como diria o poeta Ascenso Ferreira, pernas para o ar! Ninguém é de ferro... Nem besta de carga a ponto de perder feriado e curtir o sacrossanto direito à preguiça em vez de se matar a troco de um salário de fome e fazer fortuna à folgada família do patrão. Noves fora a luta de classes, renegada em nome da boa harmonia entre capital e trabalho; às vezes atrapalhada pela maldita greve em rude ambição de arranjar mais uns trocados no fim de cada mês.

O mundo não havia resolvido a crucial questão do colonialismo até hoje mal resolvida ou porque não a resolveu a tempo, estourou o desastre de duas grandes guerras mundiais uma no rabo da outra deixando no rastro o Holocausto e a hecatombe atômica sem muita folga para respirar e dar começo ao grande surto de paranoia da Guerra Fria. As multidões embaladas por cantos de sereia da felicidade mediante pagamento a prazo e cartão de crédito a perder de vista até a morte do freguês abortam a realidade a troco de ópio e farsa da história. Somente a II Guerra Mundial matou 60 milhões de pessoas e pouca gente se importa com o absurdo civilizado inigualável por quaisquer povos bárbaros ou espécie de animal selvagem. Montanhas de livros, florestas transformadas em páginas de papel, rios de tinta para contar a maior história da insanidade humana de todos os tempos.

Quais foram as causas do conflito mundial? As de sempre inseridas praticamente em todas regiões e províncias do sistema moderno: fome, desemprego, exclusão social; o império do mercado acima de todas coisas... Ironicamente, o Bom Selvagem como Michel de Montaigne e Jean Jacques Rousseau contaram, por acaso foi a Europa ensinar a civilizados atear fogo ao Ancien Régime e iniciar a revolução de 1789. Eram índios tupinambás levados da Guanabara para França, os formadores do mito.
Diferentemente dos filósofos franceses, que fizeram os grandes homens de letras e historiadores brasileiros diante da monumental saga dos tupinambás? Claro, temos notáveis exceções com José de Alencar e Gonçalves Dias na literatura; na antropologia Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro, na história Ronaldo Vainfas e outros; mas regra geral cuidaram particularmente para o Bom Selvagem e seus descendentes não se apoderar jamais do “fogo sagrado” das elites: o domínio da língua nacional pela palavra escrita e, consequentemente, o empoderamento da História.

O colonizador impôs sua própria língua aos povos indígenas colonizados e escravos arrancados de diversas nações africanas. Apagou a memória dos derrotados e a tradição oral para inventou uma história “nacional” de uso vulgar da sociedade a custo de enorme alienação, inclusive falsificação da própria história dos colonos degredados e deportados como indesejáveis na Europa. De modo que os pobres de Portugal por ambição da riqueza do Brasil passassem logo a representar o estamento civilizado na colônia. Cada camponês semiletrado na aldeia de origem atravessando o Atlântico ao desembarcar já posava de bacharel, funcionário de alfândega, missionário, capelão, capitão de milícia, senhor de engenho e dono de escravos. Não foi à toa que, em Portugal, chamar a alguém de brasileiro resultava ofensivo.
O clima jogou papel importante nas duas colônias que Portugal houve na América, o Estado do Brasil na faixa subtropical foi mais ameno a algarvios, madeirenses e açorianos. No Estado do Maranhão e Grão-Pará, sem índio não ia o colono a lugar nenhum: esta a grande diferença do clima equatorial na colonização europeia. O paradoxo, roubar a alma do filho do índio para fazer deste exilado do mato (caa boc, caboco) servo da gleba com que contemplados das sesmarias poderiam ocupar o “espaço vazio” e expulsar os pais de seus servos para o limbo da História. Foi o que sucedeu.

Mas, apesar da “caboclização” à força de decreto, palmatória e casamento compulsório de índias e portugueses deportados; cresce a reconstrução de parentesco entre populações cabocas e indígenas remanescentes dos antigos amazônidas nativos, estimados em até 6 milhões de habitantes à época da conquista do “rio das amazonas”, no século XVII. A cegueira dos donos do Poder deixa a historiografia de calças curtas; é mal sem cura: ameaças de infernos ou promessas de vida eterna no paraíso não puderam evitar que os senhores moderassem seus apetites e maus costumes.
Assim, com a farsa da história o velho mundo governa o novo... O desmedido sacrifício do século XX, malmente remediado com o Plano Marshall na reconstrução europeia; sem cuidar do resto do mundo, desperdiçou ocasião histórica para fazer uma comunidade mundial melhor. A lembrança de 6 milhões de judeus, 4 milhões de eslavos e 5 milhões de russos assassinados por intolerância, a mortandade de japoneses pelas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki são crimes de lesa humanidade que se não poderá esquecer nunca. Mas, e do genocídio ameríndio, quem lembra ainda? Sobre o crime de destruição de civilizações negro-africanas deve-se silenciar? Cedo ou tarde há de chegar o dia em que todo mundo irá clamar pela adoção de um novo plano Marshall – aliás, Plano Mandela – para recuperação dos lesados da Terra: nesse momento será preciso que o Palácio Cabanagem aprove lei nova para corrigir o erro, passanndo a Data-Magna a se referir ao dia 28 de Maio em memória dos patriotas paraenses da heroica vila de Muaná.

A controvérsia, provavelmente, levará novos eleitos ao Palácio Cabanagem a rever a lei à luz de novos estudos históricos, inclusive sobre os 400 anos de fundação de Belém e criação do estado do Maranhão e Grão-Pará (Amazônia colonial portuguesa), no século XVII. Para o pensamento conservador a identidade da pátria depende das grandes datas e personalidades fundadoras da nacionalidade; porém o progresso da ciência histórica, essencialmente dialética e evolutiva no mundo contemporâneo; reclama sobretudo o fato histórico e sua interpretação historiográfica ao longo do tempo e das gerações.

Deste modo, se historiadores positivistas no passado podiam achar com razão que os mortos governam os vivos; e mais longe as mulheres não tinham direito a votar; o direito canônico permitia escravidão de indígenas e negros baseado em dogmas da antiguidade e pretexto de civilizar os bárbaros; os direitos humanos modernos a cabo de lutas memoráveis, nos diz o contrário. São as presentes gerações que explicam o passado e que constroem o futuro, tanto para o bem como o mal.

Não se poderia esperar de fontes coloniais uma opinião favorável aos povos conquistados e colonizados. Logo, a historiografia colonial para os estudos históricos contemporâneos não podem ser mera repetição de textos sagrados; pois isto seria tudo menos objeto da História enquanto ciência. As fontes históricas se expandem continuamente com novas pesquisas, descobertas e interpretações arqueológicas, etnológicas, antropológicas, geográficas e documentais que não só permitem, mas até mesmo obrigam a incluir personagens históricas antes condenadas como criminosos e hoje heróis, tais como a figura de Tiradentes, o mártir da Inconfidência Mineira.

Na história da Amazônia há heróis como Ajuricaba dos Manaus, cuja memória foi defendida da infâmia colonialista por ninguém menos que Joaquim Nabuco ao tratar da questão do Pirara, na fronteira do Brasil com a colônia amazônica da Inglaterra (hoje a República Cooperativista da Guiana). No Pará uma garimpagem minuciosa nas fontes do período colonial poderá achar episódios interessantes, como por exemplo, as cartas do padre Antônio Vieira, em especial referente à pacificação dos Nheengaíbas; onde em meios a mil peripécias inverossímeis escapa o papel inusitado do cacique Piié dos Mapuás como interlocutor avisado e liderança que desdiz a fama de canibais indomáveis que caçadores de escravos e o inimigo hereditário antropófago tupinambá inventavam sobre os habitantes da cobiçada e invencível ilha do Marajó.

No caso da adesão do Pará à Independência, a tal “data magna” não se sustenta diante de uma simples leitura de causas e consequências abordadas na principal fonte do período da guerra civil amazônica que ficou conhecida como a Cabanagem (1835-1840), Domingos Antônio Raiol, Barão de Guajará, em “Motins Políticos”. Raiol situa corretamente na panfletagem de Felipe Patroni, proprietário de escravos e partidário da revolução liberal do Porto; através do jornal “O Paraense”, primeiro órgão de imprensa na Amazônia; a origem da agitação popular contra o colonialismo.

A Miserável Revolução das Classes Infames

Décio Freitas em seu último livro tratou da Cabanagem, reprimida sangrentamente com um total de 30 mil pessoas mortas ou cerca de 25% da população do Pará na época. O nome de “cabanos” não foi assumidos pelos combatentes, mas obra do acadêmico Basílio de Magalhães, do IHGB, que na falta de um qualificativo comparou a revolução paraense com a Cabanada alagoana; deste nome devido a maior parte dos revoltosos viver em pobres cabanas, levando vida miserável que foi fator da revolta.
O norte do Brasil só passou a ser brasileiro um ano após o Grito do Ipiranga. Durante o domínio espanhol (1580-1640), em 1608, desenhou-se uma divisão norte e sul do território brasileiro, mas só em 1615 o Maranhão foi tomado aos franceses que fizeram alia a França Equinocial. Em 1621, o norte e o sul receberam nome de Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará, este com capital em São Luís, que em 1751 passou a Estado do Grão-Pará e Maranhão, com capital em Belém. A mesma capital permaneceu na última mudança, em 1772, quando se desmembraram as duas partes, com as províncias do Maranhão e Pará. Era a Amazônia portuguesa uma colônia separada do Brasil, que fazia intercâmbio direto com a metrópole em Lisboa e o estrangeiro, sem intermediação do Rio de Janeiro. Belém era uma capital com expressiva presença estrangeira, enfim uma colônia equatorial separada do estado colonial do Brasil.
O peculiar colonialismo português na Amazônia, agravado pela geografia equatorial; criou uma das piores burguesias ultramarinas, incapaz do menor esforço sem depender de escravos até para ínfimos trabalhos domésticos e exploração de negros e negras de aluguel. A pobreza dos senhores era ostensiva de tal maneira que poucos podiam comprar escravos negros na praça do Maranhão, muito caros para a posse dos colonos do Pará, o resultado era uma opressão terrível e tirania insuportável sobre a massagada de tapuios (índios mansos; diferente de tapuia, índio brabo) e um conflito permanente entre o clero, governo e o estamento de colonos. O povo, portanto, era a massagada indígena desamparada acrescida de poucos negros escravos e mulatos libertos. Os “habitantes” da Cidade eram sinônimo de “branco” e “português”, mais por critério de renda que a cor da pele ou “raça” dos indivíduos. Muitos descendentes da patuleia lusa degredada faziam parte do povo, eram conhecidos por brancaranas (pseudo brancos, em língua geral amazônica), simpatizantes do regime republicano através de contatos com a vizinha Caiena (ocupada por tropas paraenses, de 1809 a 1817), partidários da adesão à independência do Brasil, e por fim aliados aos cabanos.
Com a nova da Independência em 1822, os paraenses como os povos de outras regiões e províncias periféricas agitaram-se na perspectiva de uma mudança de regime. Enquanto a classe comercial dependente das exportações temia o rompimento com o reino de Portugal, ao mesmo tempo que desejava o fim do domínio colonial, mas também descentralizar o país repartindo o poder com as províncias. A Constituinte convocada por Pedro I foi dissolvida sem solução de continuidade do velho regime e a própria independência caiu numa armadilha conservadora.
Em várias províncias surgiram oposições contra o governo imperial exigindo autonomia para as regiões. Neste contexto histórico ocorreu a renúncia de dom Pedro I e guerras civis como a Farroupilha, no Rio Grande do Sul, entre 1835 e 1845, e a Cabanagem, no Pará, de 1835 a 1840. Esta é motivo do último livro de Décio Freitas, “A Miserável Revolução das Classes Infames”. O autor postula a existência de uma testemunha dos acontecimentos, um bretão chamado Jean-Jacques Berthier, cujo pai teria sido partidário de François Noël Babeuf, dito Gracchus Babeuf, revolucionário morto na guilhotina durante o Terror, na Revolução Francesa, como o pai de Jean-Jacques Berthier.

Interessante observar os contatos históricos do Pará revolucionário com o exterior, dos republicanos dos Estados Unidos, revolução dos escravos e independência do Haiti, movimento liberal do Porto, a Carbonária italiana e jacobinos franceses. Décio Freitas conheceu o personagem por meio de cartas escritas desde Belém do Pará pelo próprio Berthier a um seu irmão que vivia na França. O historiador encontrou relatos privilegiados dos acontecimentos, Berthier é um jovem que participou da queda da Bastilha. Por isto ele, em 1797, se encontra deportado em Caiena e anos depois da ocupação anglo-portuguesa da Guiana francesa, cerca de 1820, passa a Belém do Pará aos 38 anos de idade. Sendo um veterano Berthier distinguiu os fatos, tensões encobertas, intenções mal disfarçadas, significados mais obscuros da Cabanagem. Décio Freitas pretendeu superar os “claros, omissões ou insuficiências” das informações nas cartas de Berthier, apesar do livro terminar sendo “uma narrativa à base daquilo que ele [Berthier] testemunhou”, “uma construção feita pelo historiador” da observação da luta popular vista com frieza e pessimismo pela testemunha estrangeira.
Um dos focos de interesse da obra é o modo de vida e a ação dos tapuios, populações indígenas destribalizadas (cabocos), ainda relativamente isolados das mais etnias do entorno da Cidade. Os tapuios formavam grupo ao mesmo tempo social e cultural homogêneo. Formaram a maior parte da população paraense em armas, apesar dos combatentes negros ansiosos por se ver livres da escravidão terem se distinguido de modo particular, mas de todo modo foram minoritários. Não havia capital suficiente no Pará para comprar grande número de escravos africanos. Outro foco do relato de Berthier se ocupa da trama política da Cabanagem, segundo lhe pareceu tratou-se de um confronto entre dois grupos socialmente distantes e diametralmente opostos: as “classes infames” formadas de tapuios, índios ainda aldeados, negros libertos, mestiços de variados tipos, gente pobre em geral, junto a setores de classe média como alguns comerciantes, jornalistas e padres. E as denominadas “principais famílias”, de grandes comerciantes, exportadores, latifundiários, ocupantes de altos postos mais da administração e da Justiça, claramente colonialistas pró-Portugal.
O historiador Décio Freitas abandona a aparente frieza das cartas de Berthier para tomar partido das “classes infames”. Sem, no entanto, lhes dotar de atributo messiânico ou revolucionário. O pessimismo de Berthier parece contaminar o derradeiro livro de Décio Freitas e o relato termina desesperador, as “principais famílias” vítimas do próprio egocentrismo restam indiferentes ao futuro da sociedade. Como se o destino de todo colono seja idealizar a mãe-pátria distante e devastar a Terra sempre pronto a evadir-se e emigrar. Enquanto as “classes infames” parecem condenadas a não saber autogovernarem-se, a estabelecer autonomia local, em sua deriva social entregam-se a sem número de desregramento com mais apego à lubricidade e ao sexo do que ao trabalho e à organização política.
Berthier talvez através de Décio Freitas tenha superestimado numa situação de guerra civil cenas de sexo e violência próprias de qualquer conflito armado, o civilizado projeta no bárbaro seus instintos sufocados no velho mundo. O diabo são os outros (Sartre), as “principais famílias” querem ver nas “classes infames” a natureza luxuriante e incontrolável. Berthier confunde datas e episódios dos inícios da Cabanagem, mas percebe perfeitamente que a Tragédia do brigue Palhaço (em outubro de 1823, em não em 1831) como desfecho do engodo anglo-português de 15 de agosto foi a causa primária do transe de 1835, 12 anos depois.